O Processo
Falar de The Trial, de Orson Welles, implica, tal como em qualquer filme que adapta um romance, tecer breves considerações sobre as ligações entre Cinema e Literatura. Por comodidade, limito-me a salientar que faço parte do grupo que entende que o filme não tem de, necessariamente, adaptar de forma canina a obra que lhe está na base.
Viajar ao Mundo de Franz Kafka equivale a aventurarmo-nos no mundo do surreal, do absurdo, pelo que o desafio que se coloca a quem queira adaptar prende-se com o como exprimir a claustrofobia e angústia despoletados por uma visão delirante e angustiante da Humanidade. Neste particular, Welles brindou-nos com uma demonstração exemplar da sua genialidade enquanto realizador. Em The trial o espectador é brindado com uma visão labiríntica do pesadelo Kafkiana: através de cenários comunicantes e interligados, como se de vasos sanguíneos se tratasse, vêmo-nos transportados, num ápice, quer para o tribunal, quer para quarto abjecto do pintor ou para a faustosa habitação do advogado.
Mais do que uma interpretação barroca da genial obra de Kafka, Welles, de certo modo, projecta-se em Joseph K. (genial Anthony Perkins), fazendo-nos embarcar na reflexão sobre o sentido do processo, a função do Direito e, mais importante, a (ausência de) solidariedade humana. Se em Nineteen-Eighty Four de George Orwell tivéramos a oportunidade de sentir a opressão que um regime político pode exercer, em Kafka fomos mais além e vimos a opressão cometida pelo guardião da justiça: o Tribunal.
O Tribunal, entidade abstracta e fonte de injustiças, é omnipresente e Welles, com grande sageza, transmite a claustrofobia resultante dessa opressão. A sucessão frenética de travellings, picados, contra-picados e planos oblíquos também nos leva a sentir acossados. Quer estejamos perante os planos do escritório de K., quer perante os processos acumulados que serão o leito do romance entre K. e Léni (Romy Schneider), sentimo-nos sempre pequenos e insignificantes. Perante a magnificência de Welles e, mais importante, perante a impossibilidade de combater um inimigo invisível, sobressaindo sempre o absurdo de nunca sabermos o porquê do processo movido contra K. Aliás, talvez o finíssimo jogo de espelhos entre Léni e K. possa funcionar como metáfora de toda a situação: no fundo, tudo se resume a saber se a acusação espelha a culpa do arguido.
Na verdade, é esta sensação de pequenez que leva a que "esqueçamos" as pequenas traições a Der Prozess. K. acaba por explodir em vez de Morrer como um cão. Aqui K. morre bradando contra os inspectores, como que levando a cabo a afirmação da sua teimosia e, simultaneamente, da sua inocência. K. morreu como um mártir, explodindo. Com efeito, tendo em conta o ritmo frenético do filme, não vislumbramos outro modo para finalizar.
Bem vistas as coisas, Welles provou o seu ponto de vista, tal como Kafka: K. morreu em nome de um processo e de uma culpa formada, sem ter tido direito a defender-se. Ou seja, mostrou-nos os perigos de todo e qualquer processo, com o mérito de, através do excesso e do recurso ao surreal, provar que a distância entre a verdade judiciária (aquela que se prova em Tribunal) e a Verdade é abissal.
Bem vistas as coisas, Welles provou o seu ponto de vista, tal como Kafka: K. morreu em nome de um processo e de uma culpa formada, sem ter tido direito a defender-se. Ou seja, mostrou-nos os perigos de todo e qualquer processo, com o mérito de, através do excesso e do recurso ao surreal, provar que a distância entre a verdade judiciária (aquela que se prova em Tribunal) e a Verdade é abissal.
The trial acaba, pois, por ser mais do que um exercício de puro virtuosismo. É uma obra dotada de coerência, quer com o Universo de Welles, quer com o cerne da obra de Kafka.
À guisa de post scriptum: não deixa ser flagrante o contraste entre a simplicidade do genérico e da humildade com que Welles se apresenta, no final, como realizador do filme, com a magnificência do filme enquanto tal.
À guisa de post scriptum: não deixa ser flagrante o contraste entre a simplicidade do genérico e da humildade com que Welles se apresenta, no final, como realizador do filme, com a magnificência do filme enquanto tal.
4 Comments:
Grande, grande filme.
Grande, grande post!
grande post...grande Livro, o tal em que me inspirei para um trabalho de Direito Penal com a Profª Fernanda Palma - célebres tempos académicos tão familiares ao autor do blog :)
abraço.
pois muito obrigado pelos elogios! :-)
Tiago quanto ao livro e ao trabalho de Penal, apenas te posso dizer, salvo o devido respeito, que a falta de originalidade grassa pelas Faculdades. "O processo" a par de "Crime e Castigo" de Dostoievsky são invariavelmente os escolhidos...apenas pelo motivo que tratam temas clássicos: é sabido que a Culpa é fundamental no Direito Penal. É o seu ponto gravitacional, a sua razão de ser. O seu Sinn und Zweck como se diz em certa língua bárbara.
Se os meninos na Faculdade quisessem inovar verdadeiramente abordariam as ligações entre anomia e Direito Penal, algo patente em "Journal du Voleur" ou "Querelle de Brest" de Jean Genet ou em "Clockwork orange" de Anthony Burgess. Afinal como impor a magna carta do delinquente (o Código Penal) a alguém completamente alheio às regras morais e sociais? Algo que os tratados esquecem. (mesmo os alemães só tratam isto lateralmente)
Abraço!
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