sexta-feira, julho 21

O Processo

Anthony Perkins em The trial

Falar de The Trial, de Orson Welles, implica, tal como em qualquer filme que adapta um romance, tecer breves considerações sobre as ligações entre Cinema e Literatura. Por comodidade, limito-me a salientar que faço parte do grupo que entende que o filme não tem de, necessariamente, adaptar de forma canina a obra que lhe está na base.
Viajar ao Mundo de Franz Kafka equivale a aventurarmo-nos no mundo do surreal, do absurdo, pelo que o desafio que se coloca a quem queira adaptar prende-se com o como exprimir a claustrofobia e angústia despoletados por uma visão delirante e angustiante da Humanidade. Neste particular, Welles brindou-nos com uma demonstração exemplar da sua genialidade enquanto realizador. Em The trial o espectador é brindado com uma visão labiríntica do pesadelo Kafkiana: através de cenários comunicantes e interligados, como se de vasos sanguíneos se tratasse, vêmo-nos transportados, num ápice, quer para o tribunal, quer para quarto abjecto do pintor ou para a faustosa habitação do advogado.
Mais do que uma interpretação barroca da genial obra de Kafka, Welles, de certo modo, projecta-se em Joseph K. (genial Anthony Perkins), fazendo-nos embarcar na reflexão sobre o sentido do processo, a função do Direito e, mais importante, a (ausência de) solidariedade humana. Se em Nineteen-Eighty Four de George Orwell tivéramos a oportunidade de sentir a opressão que um regime político pode exercer, em Kafka fomos mais além e vimos a opressão cometida pelo guardião da justiça: o Tribunal.
O Tribunal, entidade abstracta e fonte de injustiças, é omnipresente e Welles, com grande sageza, transmite a claustrofobia resultante dessa opressão. A sucessão frenética de travellings, picados, contra-picados e planos oblíquos também nos leva a sentir acossados. Quer estejamos perante os planos do escritório de K., quer perante os processos acumulados que serão o leito do romance entre K. e Léni (Romy Schneider), sentimo-nos sempre pequenos e insignificantes. Perante a magnificência de Welles e, mais importante, perante a impossibilidade de combater um inimigo invisível, sobressaindo sempre o absurdo de nunca sabermos o porquê do processo movido contra K. Aliás, talvez o finíssimo jogo de espelhos entre Léni e K. possa funcionar como metáfora de toda a situação: no fundo, tudo se resume a saber se a acusação espelha a culpa do arguido.
Na verdade, é esta sensação de pequenez que leva a que "esqueçamos" as pequenas traições a Der Prozess. K. acaba por explodir em vez de Morrer como um cão. Aqui K. morre bradando contra os inspectores, como que levando a cabo a afirmação da sua teimosia e, simultaneamente, da sua inocência. K. morreu como um mártir, explodindo. Com efeito, tendo em conta o ritmo frenético do filme, não vislumbramos outro modo para finalizar.
Bem vistas as coisas, Welles provou o seu ponto de vista, tal como Kafka: K. morreu em nome de um processo e de uma culpa formada, sem ter tido direito a defender-se. Ou seja, mostrou-nos os perigos de todo e qualquer processo, com o mérito de, através do excesso e do recurso ao surreal, provar que a distância entre a verdade judiciária (aquela que se prova em Tribunal) e a Verdade é abissal.
The trial acaba, pois, por ser mais do que um exercício de puro virtuosismo. É uma obra dotada de coerência, quer com o Universo de Welles, quer com o cerne da obra de Kafka.

À guisa de post scriptum: não deixa ser flagrante o contraste entre a simplicidade do genérico e da humildade com que Welles se apresenta, no final, como realizador do filme, com a magnificência do filme enquanto tal.

4 Comments:

Blogger Ricardo said...

Grande, grande filme.

12:32 da tarde  
Blogger filipelamas said...

Grande, grande post!

6:17 da tarde  
Blogger Tiago Barra said...

grande post...grande Livro, o tal em que me inspirei para um trabalho de Direito Penal com a Profª Fernanda Palma - célebres tempos académicos tão familiares ao autor do blog :)

abraço.

11:30 da tarde  
Blogger Hugo said...

pois muito obrigado pelos elogios! :-)

Tiago quanto ao livro e ao trabalho de Penal, apenas te posso dizer, salvo o devido respeito, que a falta de originalidade grassa pelas Faculdades. "O processo" a par de "Crime e Castigo" de Dostoievsky são invariavelmente os escolhidos...apenas pelo motivo que tratam temas clássicos: é sabido que a Culpa é fundamental no Direito Penal. É o seu ponto gravitacional, a sua razão de ser. O seu Sinn und Zweck como se diz em certa língua bárbara.

Se os meninos na Faculdade quisessem inovar verdadeiramente abordariam as ligações entre anomia e Direito Penal, algo patente em "Journal du Voleur" ou "Querelle de Brest" de Jean Genet ou em "Clockwork orange" de Anthony Burgess. Afinal como impor a magna carta do delinquente (o Código Penal) a alguém completamente alheio às regras morais e sociais? Algo que os tratados esquecem. (mesmo os alemães só tratam isto lateralmente)

Abraço!

1:26 da manhã  

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