Lisboa de ontem e de hoje
“Vivíamos do ar. Do ar, dizia a madrinha, enfurecida com o nosso modo de viver entre o café do bairro, a batota e os cabarets vazios das noitadas lisboetas. Da madrugada! Onde se traficava o nosso pequeno contrabando: tabacos, transístores, antenas, umas miúdas lançadas à vida, postas a render, é claro, e a quem púnhamos nomes de guerra em vez de números: era a Palito LaReine, a Rosa Enfeitada, a Mimi Bocas-Fora, a Lili Bóbó que agora por acaso até é uma senhora…” de Kilas, o mau da fita
(Re)Ver Kilas, o mau da fita equivale a revisitar os escombros de uma Lisboa antiga. A Lisboa dos bairros tradicionais, dos marialvas, dos engatatões, dos malandros que, sob um manto de brumas, cedeu lugar à luz e ao calor, substituídos pela sujidade e pela degradação…
Mas Kilas, obra maior de José Fonseca e Costa, vai para além desse mero retrato da marginalidade. Fonseca e Costa, coadjuvado pela extraordinária banda sonora de Sérgio Godinho e pela parceria na redacção do argumento com o escritor brasileiro Tabajara Ruas*, mostra-nos a Lisboa dos pequenos marginais, dos proxenetas e dos contrabandistas. Uma Lisboa provinciana nos seus hábitos e nos seus tiques, ensimesmada num passado que já não volta e recusando o Futuro que está ao dobrar da esquina.
De certo modo, essa mutação é palpável na própria evolução de Kilas (sensacional Mário Viegas) que de gatuno pilha-galinhas, roubando caracteres da tipografia onde trabalhava, passa a pequeno rei do bairro, um capo do seu pequeno grupo de marginais de bairro. Passámos do Kilas trapalhão e torpe, para toparmos com um Kilas frio, distante e calculista. E à medida que vemos essa transformação, será cada vez mais duro o rosto de Kilas, tal como passará a ser, paulatinamente, um mero espectro cujo rosto não mais veremos totalmente iluminado.
Esta mutação mais não é do que a própria projecção das alterações sofridas pela Urbe. Kilas é, até certo ponto, o arquétipo do típico lisboeta. Todavia, já não lidamos com a Lisboa simpática e alegre popularizada pelas comédias dos anos 30 e 40. Estamos perante a Lisboa suja e degradada, sem identidade nem alma, povoada pelos filhos da noite, pelos marginais. Dir-se-ia que a cidade perdeu as suas virtudes, tal como perdeu os seus habitantes, que sofreram uma mutação irreversível. Para pior. Apenas a Madrinha (Milú) faz a ponte entre presente e passado, mas mesmo ela, amargamente, tem perfeita consciência de ser impossível voltar para trás, tal é a perdição que guia as restantes personagens.
Já não lidamos com o indivíduo alegre e gingão. Sobrou, apenas, o marginal. Aquele que cresceu rodeado por edifícios degradados, cafés sujos e ruas obscuras. O humor deixou de ser um modo de encarar a vida. Tornou-se, tão-somente, na tirada irónica lançada com o fito de espezinhar e ridicularizar o interlocutor. Foi-se a pureza. Ficou a malícia. Tal como apenas ficaram os traços negativos de tempos idos: um sociedade machista, em que o homem tem de ser o chefe de família. Aquele que, mesmo sem razão, grita, refila, espanca, desbarata dinheiro e vive para as aparências. Mais do que um chefe, este é um mísero tiranete que só se sabe impor perante os mais fracos.
Talvez por isso não seja de estranhar que até o Amor seja um mero meio para atingir objectivos pessoais. Kilas obriga Pepsi Rita (Lia Gama) a dedicar-se à vida de alterne. Tal como a amizade. Tereno, o amigo de Kilas, acaba por atraiçoá-lo para também ele ser um rei do bairro. Em Kilas tudo é efémero e serve apenas para satisfazer meros interesses pessoais, Já não lugar para altruísmo. O Leviatã está aí e somos todos lobos do Homem, transformando-nos no nosso pior inimigo.
Fonseca e Costa projectou a sua câmara de forma implacável sobre Lisboa. Apesar dos inúmeros e belíssimos travellings com que somos brindados no decurso do filme, Kilas mais não é do que um plano picado sobre uma Lisboa que ainda hoje subsiste. A câmara nunca estremece, nunca falha e dá-nos, sob uma aparente ficção, um retrato duro e cru do povo português. Em Kilas, os risos iniciais transformam-se, progressivamente, em sorrisos amarelos, para se transformarem numa sensação amarga, própria de um rebate de consciência por vermos muita da realidade envolvente retratada no écran.
É essa a marca de um grande filme: não ficar datado e ser capaz de nos levar à reflexão. Sobretudo porque, apesar de distarem quase 25 anos sobre a data de estreia, Kilas, continua tão actual como então. Talvez por este motivo, não seja desrazoável ter presentes os versos iniciais do Fado do Kilas:
Foi num velho cinema de reprise
(Sérgio Godinho)
* A talho de foice, saliente-se que muitos dos ambientes deste Kilas, o mau da fita, fazem-nos recordar o genial romance do escritor brasileiro Tabajara Ruas A região submersa, obra onde encontramos um detective muito especial: Cid Espigão, vulgo o Docinho, retrato caricatural de muitos dos detectives com que a literatura policial americana nos brinda. Algo que, entre nós, já Dinis Machado, sob o pseudónimo de Dennis McShade fizera com o tríptico de aventuras de Phylip Maynard: A mão direita do Diabo, Mulher e arma com guitarra espanhola e Requiem para D. Quixote
7 Comments:
Também estava na Cinemateca ontem para ver o "Kilas" ! Obrigado por este texto.
Ora por quem sois! :-) Obrigado eu pela visita e pelo comentário!
Apenas acerca do teu comentário, noutro local, sobre a inexistência de edição em DVD. Apesar de fundamental, não me parece que iria reflectir o êxito comercial da época de estreia.
Eu já li um post muito parecido com este noutro blog.
Até com a mesma fotografia.
Mas pronto, percebo que o mesmo filme suscite reacções semelhantes, mesmo com quase um ano de distância.
Ah, aproveito para chamar a atenção sobre a programação da cinemateca. Parece-me que começou a entrar em pescadinha de rabo na boca, como muitas e muitas repetições...
Ilustre anónimo, fotografias de "kilas, o mau da fita" são escassas, conforme uma pesquisa no google ou no altavista podem demonstrar...
O blogger sempre grato pelos reparos,
HA
Bela sugestão.
Só algumas impressões sobre o filme...
http://chroniqueslisbonne.blogspot.com/2006/07/kilas-o-mau-da-fita.html
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