Carta aberta a Alfredo de Mónio
Caro Alfredo,
Vi ontem a curta-metragem da sua autoria intitulada "Madrugada". Antes do mais, devo dizer que se aquilo é uma amostra do novo cinema português ou, indo mais longe, o futuro do cinema português, Portugal não tem futuro.
Fazer um filme, mesmo que seja uma curta-metragem, implica um trabalho de conceptualização relativamente profundo. Por isso mesmo, a sucessão de planos banais e inconsequentes com que nos brindou não podem considerar-se como um filme. Fazer Cinema não é nem pode ser limitar-se a filmar a Ponte 25 de Abril, o Cristo Rei ou a folhagem de árvores, com uma voz off (absolutamente maquinal, diga-se de passagem) narrando uma história vulgar. Como certamente saberá, Michelangelo Antonioni, no magistral Blow-up filmou o vento assobiando pela folhagem das árvores. Mas fê-lo num dado contexto, projectando a emoção das suas personagens na Natureza. Em Madrugada não vimos nada disso. Quais as emoções? Quais os sentimentos?
Aliás, convém referir que um filme não se pode limitar a por em off um determinado argumento (já de si banal): uma jovem grávida que a caminho da maternidade tem um acidente e morre. Posteriormente, telefona para o pai da criança, comunicando a morte. Caro De Mónio, entendo que, ao não mostrar o acidente, quis fazer uso da elipse, mas, convenhamos, se a ideia era essa, saiu totalmente falhada. Mas será que, pelo contrário, procurou abstrair emoções através do recurso a imagens estáticas? Também assim falhou redondamente. A única sensação que Madrugada despoleta no espectador é o tédio e, quando muito, simpatia pelo esforço de tentar fazer um filme que nem sequer chega a ser, passe o pleonasmo, esforçado.
A carta já vai relativamente longa e por isso finalizo com duas observações: i) citar um poema de Verlaine, a final, pareceu-me de um pretensiosimo intelectual totalmente dispensável, atendendo à mediocridade do que víramos antes; ii) a falta de meios não é desculpa para se fazerem coisas más.
Com efeito, se tivesse estado presente na Ante-estreia da sua curta-metragem teria podido visionar Le procès de Orson Welles e aprenderia a fazer um filme monumental sem meios. Aliás, neste particular, permito-me sugerir-lhe que veja La maman et la putain de Jean Eustache. É um filme com o qual aprenderá a maximizar a total ausência de meios para construir uma obra fundamental. Reitero: a ausência de meios, per se, não justifica a fraca qualidade de uma obra fílmica.
Caro Alfredo, se Madrugada é a primeira amostra da obra com que nos brindará no futuro, rogo-lhe, encarecidamente, que se abstenha de a partilhar connosco. Filmes pretensiosos e banais são coisas que não faltam nas salas de Cinema. Em qualquer caso, prefiro presumir que Madrugada se limitou a ser um projecto rotundamente falhado e, consequentemente, dou o benefício da dúvida à curta ou longa metragem que se lhe seguir.
Despeço-me, com amizade.
Hugo Alves
5 Comments:
Não estava lá, mas aposto que deves ter razão. O que não faltam por aí é filmes que nem sequer deviam ser exibidos, de tão torpes que são, afundados no buraco negro da pseudo-intelectualidade. Chamam-se a estes imitadores baratos de Manoel de Oliveira: fazer planos fixos ao som de um texto literário, sem qualquer preparação prévia e sem coesão estética / cinematográfica para a retina dos olhos.
O lado bom é que, daqui por um ano ninguém se lembrará deste filme; o lado mau é que há algumas coisas boas que, ocasionalmente, passam em ante-estreia na Cinemateca, e que não têm projecção suficiente, em festivais ou circuito televisivo. Quer o filme seja bom ou mau, está condenado a ter como público só amigos e conhecidos do realizador.
Assim andam os apoios do ICAM, num critério de gosto dúbio, e a conduzir lentamente (e com complacência) ao suícidio do cinema português.
Caro anónimo,
Ainda bem que refere que só os amigos do realizador vêm o filme. Neste caso, produziu-se uma debandada geral após a projecção da "coisa". E ir lá pra ver "aquilo" em detrimento de "the trial" é a prova máxima que a mediocridade reina neste país. Eu entendo que o universo de Kafka não é facilmente digerível, mas, caramba!, há limites.
Quanto ao restante, subscrevo na íntegra. Com um acrescento: não gosto de ser insultado. E "madrugada" foi um insulto quer para a minha (parca) inteligência quer para a minha vista, que já de si anda mal tratada (scilicet, violentada) ultimamente com tratados e mais tratados jurídicos.
Em qualquer caso, continuo a achar que Alfredo de Mónio devia ter estado presente para ver "the trial". A humildade de Welles aquando dos créditos finais seria uma lição a não mais esquecer.
Grato pela visita!
Subscrevo o teu texto (filmes destes não devem existir), mas faço um reparo em relação ao comentário: o Welles nos créditos finais não me pareceu humilde, sem que tenha, também, sentido o oposto. Mas pareceu-me um bocado "cromo", "maniento". Mas posso ter ficado com a sensação errada.
Já agora, não resisto a citar outro filme que sem meios fez muitíssimo: "Les Carabiniers", de Godard.
O problema, para mim, está no facto de as curtas não serem exibidas, tantas vezes quanto desejável, como complemento de longas nacionais ou mesmo internacionais. Isto faz com que haja uma desresponsabilização de quem as faz, pois estes filmes raramente se encontram com o público. O Onda Cuta é pouco visto; os festivais exibem normalmente muitas curtas de cada vez, o que faz com que o desgosto face a objectos destes seja limitado pela atenção que se tem de dar a outras curtas. Como, pura e simplesmente, neste contexto, não são para ser vistos, estes filmes confundem amiúde personalidade com hermetismo. Se estes cineastas tivessem de se confrontar com uma audiência e levassem nas orelhas como se não houvesse amanhã, talvez o panorama mudasse.
Cumprimentos,
Miguel Domingues
Miguel, tenho só um problema com o teu comentário: será que autores como o deste "Madrugada" chegam a ser subsumíveis na expressão "cineasta" ? É que dos 21 minutos de madrugada há algo totalmente ausente: o Cinema...
Tirando isso, tens toda a razão.
Abraço!
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