terça-feira, janeiro 9

Ele é um santo



Em Au hasard Balthazar Rober Bresson oferece-nos um curioso exemplo de expiação. É através do olhar do jumento Balthazar, tantas vezes focado ao longo do filme, que o espectador toma contacto com um conjunto de personagens dominadas pelo pecado - orgulho, avareza, inveja, ira, gula, luxúria e preguiça - e que verão esses pecados serem expiados, de forma passiva (acaso Balthazar fosse dotado de racionalidade e seria estoicismo), por Balthazar, um mero jumento que, graças ao puro acaso, vai conhecendo vários donos que, lenta e continuadamente, o vão fustigando e brindando com maus tratos contínuos, acabando por ser testemunha privilegiada das várias relações de amor e ódio que se vão desenrolando.

Sucede também que, no confronto com os restantes animais, Balthazar é sempre apresentado de forma altiva, indiciando a sua superioridade relativamente aos seus iguais (conforme se verifica no Circo, por exemplo). Balthazar é, assim, uma figura ambígua, de tom híbrido, uma vez que, apesar não estar em pé de igualdade com os vários Homens que vai conhecendo, está em plano superior no reino animal. Balthazar poderá, porventura, ficar a meio caminho da antropomorfização. Todavia, o que é certo é que a sua existência é dominada pelo sacríficio e pelo sofrimento. Neste particular, e caso Balthazar fosse humano, dir-se-ia que Robert Bresson corporiza na sua figura a dimensão trágica da existência. Com traços sacrificiais. Porque, como se diz a dada altura, Ele [Balthazar] é um santo. Trabalhou e nunca foi recompensado, à excepção das carícias de paus e chicotes.

Não será à toa que Balthazar surge como contraponto perfeito de Marie. Tal como esta gira entre pureza e maldade (basta ver os sentimentos que nutre por Jacques e Gerard), também Balthazar o fará. Visão redutora é certo, mas parece indesmentível que em Au hasard Balthazar temos uma mundividência maniqueísta. Acontece que, por via de regra, todos os sacríficios são exigidos a Balthazar. Ele que não é o protagonista do filme, mas é, sem margem para dúvidas, o seu fio condutor, servindo de intermediário entre todos aqueles que desfilam no écran.

Au Hasard Balthazar é, assim, um exemplo paradigmático da complexidade latente na frugalidade ascética do Cinema de Bresson

9 Comments:

Blogger José Oliveira said...

como disse Godard acerca do filme: numa hora e meia temos o mundo todo..

portentoso, monumentalmente ascético e eliptico...

1:08 da manhã  
Blogger Hugo said...

Joseo, ora nem mais! Elíptico. Muito elíptico. C'est Monsieur Bresson!

1:12 da manhã  
Blogger Nuno Pires said...

Dans le mille! Texte très juste et bien senti ;)

4:17 da manhã  
Blogger Daniel Pereira said...

Será aqui que o Seixas Santos vai buscar o mal que nos consome?

2:58 da tarde  
Blogger Ricardo said...

Vi este filme umas tres vezes. E o prototipo de grande cinema de baixo orcamento que se devia fazer mais vezes em Portugal.

8:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O mal do Seixas Santos é outro...mas não quero ofender ninguém.
Pobre Bresson, metido no mesmo saco do que o Velho Novo Cinema Português!

10:33 da manhã  
Blogger Hugo said...

Pois. De Bresson ao Seixas Santos vai muito. (e eu até gosto de "Mal").

10:36 da manhã  
Blogger Daniel Pereira said...

Será que vale a pena explicar que não meti o Seixas Santos no mesmo saco do Bresson?

12:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Desculpem o mal entendido...
Aproveito para recomendar "Body Rice", um filme muito diferente do que é hábitual por estes lados.

1:11 da tarde  

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