domingo, agosto 20

O Eterno Retorno

Clotilde Hesme e Louis Garrel em Les amants réguliers

É tarefa quase impossível ver Les amants réguliers sem que a máxima do Eterno Retorno não nos invada. Poderíamos ser tentados a afirmar que tal deve-se ao facto de estas serem as memórias do Maio de 68, segundo Garrel, ou porque estamos perante mais uma incursão nesse momento fundamental da História. Podia ser, mas não é.
Garrel, sob as vestes das suas memórias lúcidas e agridoces de tempos idos, aproveita para revisitar a Nouvelle Vague, movimento que o viu nascer para o Cinema. Com efeito, para além de estarmos perante uma prodigiosa fotografia a preto e branco, temos o prazer de rever postulados essenciais do movimento francês: jump cut, histórias banais, cenários naturais (pese embora a cena das barricadas não parecer assim tão natural…). Mais importante, somos brindados por um exercício de cinefilia: temos referências ao genial Prima della rivoluzione de Bernardo Bertolucci e às personagens de Pasolini.
Eis a chave de leitura deste soberbo filme: a par do romance de François (Louis Garrel) e Lilie (Clotilde Hesme), avulta o revisitar de uma geração povoada de ideaais, para quem debaixo da calçada está a praia. Uma geração de artistas, filósofos e livres pensadores que acabará por acostar-se ao “burguês”, o endinheirado que sustenta o vício das drogas e lhes dá guarida. E aqui entram, insidiosamente, os universos de Bertolucci e de Pasolini, figuras incontornávei da segunda vaga italiana, que, curiosamente, operou a recepção crítica da Nouvelle Vague em Itália, logo após a explosão do movimento em França em 1959.

Com efeito, ao vermos a progressiva transformação destes jovens revolucionários em boémios diletantes, não deixa de ecoar na memória a formação ideológica de Fabrizio em Prima della rivoluzione. Todavia, não vemos aqui o jovem burguês apaixonado pelos ideiais marxistas. Vemos precisamente o contrário. Garrel, no seu exercício de memória, mostra-nos a sedução de que o dolce far niente teve nos idealistas de Maio. Assim, ao longo do tempo veremos o desligar progressivo do ideal, para redundarmos na contemplação estagnada da realidade. Como num pântano, estes jovens param. Ficam num estado contemplativo, talvez à procura do Nirvana que não chega. E tudo isto feito através do recurso a um realismo cru, que relembra a fase inicial de Pasolini.
Mas este é o filme que revisita a Nouvelle Vague. Nesse particular, faz-nos lembrar, quer pela sua fluidez, quer pela sua dimensão a obra fundamental de Jean Eustache: La maman et la putain (sublinhe-se que anda lá um jovem que até dá ares de Jean-Pierre Léaud…). Talvez seja esta a influência mais marcante e não declarada de Garrel. Tal como em Eustache, vimos a Paris dos cafés, povoadas por jovens que, deambulando sem destino, procuravam a sua identidade. Pelo meio, veio o amor. E, tal como em Eustache, surgiu o trágico. L’amour est mort dir-se-ia. E, tal como na magna opus de Eustache vimos a abstracção. O dissecar dos sentimentos e da alma, até atingirmos o infinito, o vazio. Tivéssemos aqui um trio amoroso estabelecido e diríamos que Eustache ressuscitou.
Simples. Deliciosamente simples. Les amants réguliers também revisita a iluminação expressionista. Basta atentar nos rostos diluídos na penumbra ou apenas no olhar que sobressai no escuro da tela. Uma simplicidade, que também se reflecte na banda sonora. Apenas a teremos nos interlúdios amorosos de François e Clotilde, marcando o idílio e iludindo-nos na crença que tudo acabará bem. Tirando isso, resta o silêncio. Um silêncio ensurdecedor, apenas cortado pelos diálogos espaçados e profundos.
Garrel não inventou a roda e confirmou, de certo modo, a máxima do Eterno Retorno. O Cinema é um produto cultural. É o resultado do que foi feito antes. Garrel demonstrou-o através deste regresso às origens do Cinema puro. E, ao fazê-lo, não só pelo resultado, mas, sobretudo, pelo modo como o fez, recuperou a luta contra o Cinema de Papa que Truffaut, Godard e seus sequazes pugnavam.
Deste modo, este filme não só é uma pedrada no charco, como marca um regresso às origens do Cinema. Tal como os bons vinhos, Les amants réguliers foi feito para ser saboreado e não para ser consumido num ápice.


PS, à guisa de lamento: pena é que apenas uma sala em Lisboa, o King, o exiba. Sinais dos tempos. Parece que o cinéfilo é uma criatura não querida pela maioria dos distribuidores de filmes.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

um filme para apreciar com os olhos e o coração. talvez o cinéfilo. talvez mais, apenas, o humano...

(e sim, é pena que só uma sala o tenha...)

4:09 da tarde  
Blogger Hugo said...

E eu que começava a achar que este monumento, de seu nome "les amants réguliers" ia ficar sem comentários... :-)

É para amar, para aprender, para saborear. É cinema. E do bom, como já se faz pouco!

5:06 da tarde  

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