terça-feira, janeiro 24

1900 (parte I - fundamentos políticos)

Novecento - cartaz

De "Novecento" já se disse muita coisa: filme marxista, obituário do cinema europeu (devido à necessidade de recurso a estrelas internacionais), projecto megalómano, etcetera.
A sua história, que se desenrola por mais de cinco horas, é muito simples: duas crianças nascem em 1900. Alfredo (Robert De Niro) filho de il padrone (Burt Lancaster) e Olmo (Gérard Dépardieu), que nasce no meio dos operários (e é o filho ilegítimo de il padrone).
Trata-se, de facto, de um filme marcadamente político que parte de um dos clichés básicos do marxismo: os ricos são de direita e os pobres e oprimidos, por exclusão, serão de esquerda, maxime comunistas. Todavia, apesar desta abordagem marcadamente maniqueísta, Bertolucci (involuntariamente?) acaba por dar uma machadada fatal à lógica marxista.
Na verdade, verificamos que, aquando da libertação de Itália (1945), sendo já Olmo um destacado dirigente comunista, acaba por fazer a maior das provas de amizade e, simultaneamente, a maior das abstracções da ideologia marxista. Como?
No julgamento popular, Alfredo é acusado de ter espezinhado e maltratado os camponeses, mas tem direito a um surpreendentedefensor: Olmo. Este faz uso de um argumento brilhante: com a nova ordem, acabam os patrões e os camponeses. Ficam apenas os Homens. Já não temos il padrone, mas tão-somente, Alfredo Berlinghieri, um homem como qualquer um dos presentes. Il padrone morreu com a revolução e, consequentemente, nasceu Alfredo. (morte simbólica, está claro. Aliás, esta morte não será, também, a morte do capitalismo?)
Ou seja, temos a sobreposição (indirecta) do Homem sobre a Comunidade, o que marca, indelevelmente, creio, a morte do marxismo-leninismo que faz o apologismo da preponderância da Comunidade sobe o Homem. Com esta redenção simbólica, Olmo não se limita a salvar apenas o amigo. Pelo contrário, manifesta a crença profunda no Homem e não numa qualquer ideologia. Esta, quando muito, será o instrumento/meio pelo qual o Homem se salva.
Involuntariamente ou não, Bertolucci dá a machadada final no marxismo, do mesmo modo que o faz em "the last emperor", quando Pu Yi, já em idade avançada e depois de ter sobrevivido à prisão, não resiste a visitar a sua Cidade Proibida e sentar-se no trono que outrora fora seu. Ou seja, o sistema penal maoista não funcionou, o que permite concluir, que nem a mais cega aplicação dos canônes marxistas, rectius, maoístas pode apagar a identidade pessoal.
Se é certo que estamos perante um verdadeiro manifesto, um libelo acusatório contra o establishment capitalista, não é menos correcto afirmar que Bertolucci acaba por dar prevalência à crença no Homem, em detrimento da ideologia deificador da Comunidade.
Pelo meio, conhecemos a incarnação do Mal: Atila (Donald Sutherland), o camisa negra e representante do fascismo. De certo modo, Atila poderá ser o verdadeiro Leviatã de todo o filme, porquanto dedica-se a fazer uso do seu poder para perseguir os seus opositores (O Homem é Lobo do Homem, dizia, sabiamente, Hobbes). De certa forma, Atila não deixa de ser uma caricatura de Mussolini, uma vez que partilha das mesmas características: fraco intelecto e enorme força bruta. Trata-se, no fim de contas, do resumo da ascensão e da queda do fascismo: da mesma forma que, oportunamente, alcançou o poder, viu-se arredado deste às mãos do povo.
PS - diga-se, a talho de foice, que o julgamento popular que nos é apresentado no filme tem, de facto, origem maoísta e não marxista.