quarta-feira, outubro 31

Uma questão de moral

A propósito de um famigerado travelling - o travelling Kapo - veio uma máxima que ainda hoje vai subsistindo: o travelling é uma questão de moral. Ao reler Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline a questão surgiu premente: o homem era um escroque da pior espécie, alguém que não seria digno de ser conhecido, mas que assinou uma obra incontornável. Tal como Morte a Crédito, texto que se ouve logo na abertura das Recordações da Casa Amarela: Aqui estamos novamente sozinhos...isolado parece algo belo (e é), mas basta conhecer a obra de Ferdinand Bardamu para se saber que o seu egotismo e hipocrisia desabridos conduzem a resultados nefastos. Apesar disso, é um retrato perfeito do Homem moderno: quem negar que tais valores regem a vida contemporânea ou é cego ou é ingénuo.

terça-feira, outubro 30

segunda-feira, outubro 29

O Herói

"Porque é que não exiges do Cinema o mesmo que exiges à pintura ou à arquitectura?"

Pedro Costa, na passada Sexta-Feira, no sítio do costume.

Em toda uma pergunta - que, no caso, até era uma resposta - está toda uma linha programática: o Cinema enquanto Arte é um produto do trabalho, da programação metódica. Não é puro entretenimento e só é bom quando tem algo para dizer, ou seja, quando tem uma qualquer mundividência própria. Nas palavras do próprio Pedro Costa: "pensas que esses filmes abrem a cabeça [os Blockbusters, em termos gerais], mas não o fazem. (...) os meus filmes só procuram abrir a tola". Ora nem mais, Costa mostra, apenas o que vê, se bem que recorra a um filtro poético para o mostrar, bem como a uma profusão de referências cinematográficas. Não me pronuncio sobre este aspecto. Fico-me pelo primeira: basta abrir os olhos e ver. Tão simples quanto isso, tal como basta abrir os olhos e largar a letargia hipnótica provocada pelo produto-pronto-a-entreter-made-in-USA.
Confesso que acabei a sessão e fiquei com vontade de dizer Labanta braço. É precisa uma mudança comportamental. Acontece que permanecer na letargia é muito mais fácil e menos cansativo. Simultaneamente, e conforme me dizia o Daniel, acreditei que muito do público presente não merecia o filme sequer. Um simples exemplo: um energúmeno sentado ao meu lado passou a sessão a cabecear e, a final, bateu palmas a algo que não viu.

sexta-feira, outubro 26

Mestre Fuller

Quase uma semana após ter visto The Crimson Kimono, de Sam Fuller, o filme ainda ecoa vibrante na minha memória. Não é para menos: estamos perante um noir diferente, onde através do típico recurso a ambientes nocturnos, mulheres fatais e um belíssimo jogo de sombras tributário do expressionismo alemão, são abordados problemas tão díspares como o racismo ou a dificuldade de integração num ambiente hostil. Mais, dá-se prevalência a ambientes e não deixa de se piscar o olho a sequências documentais.
No demais, um Fuller vintage: violento, duro e seco. Com grandes planos sequência temperados por movimentos de câmara aparentemente pouco ortodoxos e, obviamente, personagens de rastilho curto e emoções à flor da pele. Um filme filmado ao jeito da escrita dita popular: sem preciosismos, centrando-se apenas no essencial.

quarta-feira, outubro 24

Cisão

De tanto bater o meu coração parou*:
Vivia no maior dos lodos: acossado por pressões externas, enjaulado por um meio opressivo, cinzento e pesado. Caiu num poço nigérrimo, mas acabou por encontrar a tábua de salvação: celulóide em movimento, devidamente temperado pela Literatura. Aos cifrões do Mundo que conhecia, preferiu a estética pura da Arte. Aos caros falsos amigos, preferiu a solidão da meditação. À fusão com a massa disforme da multidão, preferiu a cisão: mais vale só do que mal acompanhado.
*ou: rever o filme de Jacques Audiard e pensar no próprio umbigo.

segunda-feira, outubro 22

Mosqueteiros não. Vitelloni


Quis o acaso que um grupo de amigalhaços - apelidados humoristicamente de "mosqueteiros", tal a sua união - celebrasse os respectivos aniversários, por obra e graça da providência, no espaço de menos de uma semana. Andavam com o olhar perdido no horizonte das esperanças. Fizeram-nos Homens de Leis, ao bom jeito de João das Regras, prontos a mudar o Mundo brandindo a espada da Justiça. Ambições frustradas, decerto: entre a prática e o ideal vai um longo caminho. Pelo meio conheceram crápulas e escroques da pior espécie. Mas, sempre juntos, prosseguiram:
i) Um sonha com letras e com a fuga ao bafio das leis aplicadas. Só porque não gosta de fraudes e atropelos aos ditames do legislador;
ii) outro, ribatejano por adopção, é apaixonado pela vida e pelos prazeres que ela dá. Será um grande chefe de família.
iii) Last but not the least, o terceiro, filósofo de vocação, jurista por mero acaso, é um apaixonado pelo prazer. Um Homem com "H" grande, pleno de humanidade.
Juntos gozam a vida e a amizade, com tudo o que há de bom e mau.
Parabéns, meus Vitelloni.

sábado, outubro 20

Notas soltas: Berlin Alexanderplatz*

Quando se é dominado pelo desejo de levar uma vida normal e honesta, como Franz Biberkopf, esta é a pergunta básica: como assegurar uma existência condigna sem perpetrar quaisquer actos ilícitos. Acontece que, precisamente por tudo correr (quase) sempre de forma contrária à incialmente planeada, a pergunta adequada talvez possa ser estoutra: Wie soll man sterben, wenn man nicht leben will ? Pena penosa esta a da existência em que o simples acto de existir dói. É uma pena, em sentido próprio. Com a cruel curiosidade de se fazer sentir após Biberkopf ter cumprido as suas obrigações para com o sistema penal germânico.

Berlin Alexanderplatz, o romance de Alfred Döblin, dá-nos um retrato não destinado aos turistas incautos de Berlim: vai para além do coração berlinense Alexanderplatz, optando por percorrer vielas e ruelas, descrevendo os seus habitantes. De colagem em colagem, vamos tendo uma panóplia de histórias que têm em Biberkopf o denominador comum (em alemão, talvez haja uma palavra mais expressiva: Treffpunkt). Na adaptação fílmica de Rainer Werner Fassbinder, as ruas são meros cenários que enformam e enjaulam o sofrimento dos habitantes. O desespero é intenso: é a pena a pagar pela existência. Como se tal não bastasse, existe, ainda, a propensão para nos sentirmos estrangeiros numa terra que já não conhecemos. Biberkopf (perdão, Fassbinder), sente na pele - e nos recônditos mais íntimos da alma - a impossibilidade de integrar-se numa sociedade insensível e alheia a dramas pessoais. Sobra a angústia da existência, a incapacidade de ser, a dor não pertencer a algo ou a alguém. Uma pena insensível e fria. Provavelmente, uma demonstração exemplar da dimensão agónica e trágica - ao jeito de Miguel de Unamuno - da vida.

* Metralhadas imediatamente após ter re-descoberto os primeiros 3 episódios de Berlin Alexanderplatz, de Rainer Werner Fassbinder. Sobre o romance de Döblin, pode-se consultar este sítio web (nur auf Deutsch)

sexta-feira, outubro 19

Tempo de Antena e Direito de Resposta

Tempo de Antena: Há lodo no cais

Direito de Resposta:


(espaço deixado propositadamente em branco. O texto nem sequer merece comentário: quem conhece pessoalmente o autor disto, sabe do que ele fala e poderá tecer as suas conclusões. Felizmente, a democracia por estas bandas é uma prática viva. Por isso refiro o seu texto. Ademais, sempre achei piada a franco-atiradores)

terça-feira, outubro 16

Requiem da loucura

...perché realizzare un'opera, quando è cosi bello sognarla soltanto?...
Pier Paolo Pasolini

domingo, outubro 14

A diluição


Vou liquidar-me.
Acto contínuo, desaparece na escuridão de um Tejo baço. Dificilmente se conceberá melhor ligação entre palavra e imagem: a diluição da vida no contacto com a água num último mergulho.
Acto contínuo, o ora escriba ficou com vontade de ir para o Pólo Norte. Com a solidificação da água, o risco de diluição no turbilhão que o assola cessaria. Para além do mais, diz-se que John Wayne move maravilhosamente a sua bacia por essas bandas. E o Cinema, mesmo numa simples conjectura redundando num boato, é das poucas coisas (a única?) que o vão ligando à sanidade.
Sobreveio Hölderlin: O destino impele-me para o desconhecido* e eu bem o mereço.
*Um raccord falhado citaria, por simples prazer, Ozu: esconde do espectador aquilo que ele mais quer ver. Razão tem Godard ao por fora de campo aquilo que conta. Em bom rigor, talvez possamos aplicar essa máxima à vida: Ficar longe da vista, ser obscuro, promover a fusão com as sombras. Depuração. Abstracção máxima.

terça-feira, outubro 9

Apenas um olhar

Leonor Silveira em Vale Abrãao, de Manoel de Oliveira

"(...) Era como uma fera que tem fome, um animal peqqueno ainda, mas cujo porte denuncia já todas as graças da vontade predadora. Sentia que os laços com a mediocridade e o amor dos caminhos estavam soltos; assim como soltara a massa dos cabelos pretos, também o coração perdia uma espécie de constrangimento onde, no entanto, ele bebia uma felicidade nunca mais recuperável(...)"
Agustina Bessa-Luís, Vale Abrãao, Guimarães Ed., pp. 30-31.

segunda-feira, outubro 8

Drôle de chemin


"Ce film n’est pas du style policier.
L’auteur s’efforce d’exprimer, par des images et des sons, le cauchemar d’un jeune homme poussé par sa faiblesse dans un aventure de vol à la titre pour laquelle il n’était pas fait.
Seulement cette aventure, par des chemins étranges, réunira deux âmes qui, sans elle, ne se seraient peut-être jamais connues."

E assim, ainda antes do genérico, temos o encontro do universo espartano de Bresson - um cineasta injustamente apelidade de formalista o mais das vezes - com o Universo de Dostoiévski. Bresson é um cineasta que dá e se dá, mostrando o dilema moral do carteirista em conflito constante com a tentação do alheio e com o desejo de ser honesto. Conflito intenso, ao ponto de fazer parar tudo que rodeia Michel. Daí que fiquemos com a sensação de flutuar nas incertezas de uma alma atormentada. Noites brancas de dúvidas que cessam com a redenção no amor, tendo por cenário grades forjadas por aço temperado de silêncios. Michel acaba, assim, por ser uma emulação de Raskolnikov. A sua redenção é o drôle de chemin.

domingo, outubro 7

Provocação e Normalidade

Ich werfe keine Bombe, ich mache Filme

São muito poucos os realizadores a subirem ao Olimpo do cinéfilo. Fassbinder, provavelmente devido ao seu carácter provocatório, logrou tal feito neste recanto: não fazia filmes. Fazia verdadeiras bombas, provocando a mentalidade reinante e o cinismo da sociedade. A procura do amor impossível, aquele que é mais frio do que a morte, foi só o meio para o conseguir. Chamemos-lhe masoquismo, obsessão ruinosa, enfim...não faltarão objectivos, mas a capacidade de por a nu a alma de personagens vagueando num clima de indiferença é um mérito. E, no fim de contas, todas elas, à imagem do perturbado Franz Biberkopf, apenas procuram reatar a vida no ponto em que foi interrompida. Em Fassbinder, pese embora a singularidade de muitas das situações narradas, o desejo de normalidade comanda tudo. O desespero será, apenas, a frustração causada pelo insucesso. Tal como na vida fora da tela.

terça-feira, outubro 2

A tela projectada na vida

Começa a ser recorrente perguntarem-me quando me dedico ao Cinema ou aos Livros. Dizem-me: "Não tens feitio de advogado. Tens pinta de intelectual*" Adepto que sou das citações e afins sai, invariavelmente, "Sou um bocado como o Ethan Edwards no The Searchers: procuro obstinadamente algo que perdi. Precisamente por ter noção dessa dimensão trágica da perda [de algo que só em sonhos tive, note-se] fico com o ar distante do Jef Costello: alheado de tudo, com ar sombrio e vago. Sou, de certo modo, como o conformista do Moravia. (trocista) Acaso não serei como as personagens dele? (fixando, com ar grave, o interlocutor) Apenas anseio a normalidade. Viver a vidinha sem sobressaltos e sem causar arrepios de maior aos que se cruzam comigo. Para isso sigo uma lógica Samouraï. Apesar disso, tento ter a inocência do Doinel, mas isso já não consigo. Sabes, leva-se muita bofetada neste mundo. [por isso é que se gosta muito da ironia de João de Deus por estas bandas]"

*certamente só me dizem isto porque uso óculos. É público e notório que não gosto do epíteto.

segunda-feira, outubro 1

Roleta Chinesa


"Chinesisches roulette termina então com um enigma.(...) Por ser tão atípico é tão surpreendente, mesmo que se prefira em Fassbinder a clareza visceral e a intensidade emocional de outros filmes"
Luis Miguel Oliveira na folha da Cinemateca de Chinesisches Roulette, de R.W. Fassbinder
Sem discordar, diria que muito do que é típico de Fassbinder está em Chinesisches Roulette. Desde o masoquismo, passando pela vertigem do impossível e sem descurar os movimentos de câmara vertiginosos. Acontece que neste filme tudo é levado ao extremo para construir uma distanciação cada vez maior dos sentimentos das personagens: vê-se um pathos atroz, mas não o sentimos. Dir-se-ia que se depurou, perdão cortou o sentimento para se mostrar algo. Não há explicações e mesmo o mais estranho dos planos ou acontecimento resulta indiferente. Acontece que na vida fora do écran também não há explicação para muita coisa e nem por isso damos por nós a pensar no porquê das coisas...
Aliás, talvez a incessante procura de verdade (e vingança?) e confrontação que motiva a filha aleijada seja o exemplo maior do masoquismo que nos rege. A obsessão nasce de uma qualquer disfunção: obsidia e leva à loucura. Talvez o jogo da roleta chinesa seja apenas um alerta, talvez seja um mero retrato irreal da natureza humana. É um filme desgarrado, repleto de puzzles em que apenas há um denominador comum. Bem vistas as coisas, não será essa uma das características da vida em sociedade?