sábado, agosto 30

Sachertorte

Dei por mim a mastigar uma Sachertorte em plena Baixa. Enquanto o fazia, veio-me à ideia Michele Apicella divagando sobre os seus dilemas existenciais, olhando para o chão e, de súbito, a bradar lá para cima-não-se-sabe-muito-bem-para-quem.
Moretti, esse realizador talentoso com o seu quê de egocêntrico*, devia ser promovido a génio-pasteleiro-cinematográfico: a Sachertorte até que é uma boa metáfora para uma definição de filme:
- uma carapaça apetecível e tentadora;
- um fio de doce de alperce a separar as camadas de chocolate, sem descurar a união do conjunto, precisamente o que se pede a uma narrativa digna desse nome;
- a capacidade de, em pleno acto de degustação, esquecermos o Mundo. Aquilo que acontece quando o filme nos prende.
Que se danem as especulações fúteis sobre o CGI, o penteado da actriz, o guarda-roupa, et ceter. Um filme é como uma Sachertorte: à primeira dentada distinguimos de imediato o trigo do joio. Pior, como ficamos viciados, acabamos por voltar para mais uma fatia. Curiosamente, tal como a Sachertorte, por via de regra, o grande filme é despido de grandes enfeites e esconde uma complexa simplicidade por trás da sua máscara.
C'os diabos. Depois disto fiquei com fome...
*Egos à parte, gostamos bastante dele (Moretti, entenda-se) neste recanto.

sábado, agosto 9

Delírios violentos

De punhos no bolso, de punhos cerrados e com o olhar perdido no vazio. O gesto mais comum das personagens de I pugni in tasca.
Uma família cuja mãe cega é incapaz de administrar e controlar. Resumir-se-ia assim I Pugni in tasca, de Marco Bellochio. Será esta, também, a metáfora para caracterizar a Itália dos anos 60 nesta viagem violenta às profundezas da loucura, onde vemos crescer lentamente uma doença mórbida que se transforma na mais perfeita normalidade: a incapacidade de relacionamento, a comunicação feita pela agressão, a claustrofobia familiar. Um cadinho de sentimentos contraditórios que causam incómodo. Não só porque são um libelo acusatório contra uma classe, mas também porque mostram inelutavelmente o efeito da autodestruição e da incapacidade de reagir à inércia.
Personagens de rosto duro e apagado, tal como o universo onde habitam. Um mundo de sombras onde nos perdemos e, simultaneamente, damos por nós a encontrar o Cinema na sua pureza: na paixão com que é filmado e na total ausência de artifícios para reflectir sobre o Mundo envolvente.

segunda-feira, agosto 4

Cada vez mais cheira a cemitério a minha estante.