terça-feira, janeiro 29

Paradjanov e Ashik Kerib

Depois de ver Ashik Kerib, de Paradjanov as palavras não existem. Não contam. As cores garridas, a atmosfera mágica, poética e surreal, perdão irreal dominam. Flutuamos num mundo de sonho, onde cada fotograma talvez seja o mais belo do Mundo, enquanto, simultaneamente, é uma homenagem e, talvez, um estudo antropológico da cultura azéri. Deslumbrante.

sexta-feira, janeiro 25

Ser Apicella

Um dos aspectos que mais impressionam nos primeiros filmes de Nanni Moretti é o seu alter-ego: o sarcástico, obssessivo e depressivo Michele Apicella, o género de personagem cuja mera existência incomoda, tal é a sua capacidade de dizer verdades indesmentíveis com uma crueza e frontalidade sem par. Apicella, tal como o seu criador, é incómodo: pensa alto, diz o que pensa e não olha a quem quando o diz: usando de muitos lugares comuns, Apicella (Moretti) desfia todas as suas frustrações e desmonta todas as incongruências de um país e de uma classe. Mais do que um exemplo do narcisismo de Moretti, Apicella é uma consciência viva e um libelo acusatório contra todos. É, também, amor ao Cinema e crítica à sua degradação em consequência da sua mercantilização e espectacularização. Primarismos ideológicos à parte, Apicella é o género de personagem por quem nutrimos uma relação amor-ódio profunda, tal é a sua facilidade de, em segundos, passar da abjecção à comoção. É um sentimento ambulante.
Precisamente tudo o que surge em Ecce bombo, Sogni d'oro e Bianca e que Moretti apenas abandonou formalmente nos filmes posteriores.

quinta-feira, janeiro 24

Dois anos


Livros e, sobretudo, Cinema, eis a força motriz deste blogue, aliada à paixão assolapada pela escrita e pela troca de ideias. Disto se vai fazendo o Amarcord, tal como o ora escriba a quem cumpre agradecer a todos os que por cá passaram, renovando igualmente o "livro de estilo" que guiou a abertura desta casa ao Mundo.

quarta-feira, janeiro 23

Amor à Arte e entrega à causa

"É natural que o tema dos meus filmes afaste um pouco os distribuidores e os exibidores. São filmes de verdade e esses filmes por vezes até são chatos (...). Na medida em que esse emprego que eu tenho me possibilita pagar os filmes, nunca tenho a necessidade premente de os vender, o que eu gosto é que as pessoas os vejam. VILARINHO DAS FURNAS foi visto por mais pessoas nesta modalidade de cedência a sessões especiais de cineclubes e outras instituições do que se fosse para um cinema de distribuição comercial onde podia estar uma semana e poderia ser visto por muito menos pessoas. E isso dá-me mais prazer porque sei que essas pessoas são aquelas a quem o filme interessa. Foi um riqueza contactar com as pessoas após o filme feito, como foi uma riqueza contactar com as pessoas da minha categoria social e fazer face aos seus problemas da maneira que me é possível"

António Campos* em entrevista a Lauro António, Agosto de 1974.

* realizador português injustamente pouco conhecido, à imagem de outro António, Reis de seu nome. A entrega de Campos à causa era tanta que cedeu todo o material por si filmado ao museu do Cinema. Um exemplo a seguir de amadorismo no verdadeiro sentido da expressão: aquele que ama.

segunda-feira, janeiro 21

Une femme mariée


Une femme mariée, de Jean-Luc Godard é uma daquelas obras que deixa o ora escriba assolado por dúvidas: em pleno "período Nouvelle Vague", Godard procura uma espécie de ponto de equilíbrio entre ficção e documentário, centrando a sua atenção num estudo quase sociológico da condição da mulher casada. Filme de fragmentos, são também fragmentos da vida que vemos, numa sucessão de grandes planos, seja do rosto das personagens, seja de partes do seu corpo. Tudo quase sempre emoldurado por um cenário branco, o que parece demonstrar que este é mais do que um filme sobre uma dada mulher. Pelo contrário, é uma reflexão de carácter geral, marcada por uma depuração quase total, a qual é contrabalançada pelo simbolismo dos vários grandes planos. Um objecto curiso - cronologicamente falando - no percurso de Godard, mas simultaneamente, pleno de actualidade.
E como é de Godard que falamos, o Cinema e as citações, inevitavelmente, estão presentes, sendo que o Cinema serve, o mais das vezes, para exemplificar e concretizar tudo o que vai sendo sentido. É absoluto e dominador.

domingo, janeiro 20

Passadismo?

Passadismo, quiçá. Se é certo que Cristóvão Colombo: o enigma passa boa parte do tempo a discorrer de forma didáctica sobre a história do burgo, também não é menos certo que a presença de Oliveira, ele próprio, à frente da câmara, dota o filme de um carácter ambíguo. É que a dada altura já não sabemos muito bem se vemos o casal de historiadores amadores ou se aquele é, efectivamente, o casal Oliveira, tão grande é a cumplicidade registada pela câmara.
Aliás, discorrer pela História parece ser uma marca de Oliveira (à cabeça Non), que já nos habituou a dar uma visão negativa de Portugal: em Non tudo se resumia a uma história de fracassos, neste Cristóvão Colombo: o enigma é o lamento constante pelo esquecimento a que a memória é votada, enquanto se enaltece o passado glorioso dos Descobrimentos. Oliveira puro, por assim dizer, já que a austeridade e sobriedade também lá estão. Um curioso exercício cinematográfico, dotado de propaganda qb (nesta parte, Miguel, concordo na íntegra).
Aliás, julgo que ambiguidade é uma bela palavra para definir um filme que, mais do que dar respostas, semeia interrogações.

terça-feira, janeiro 15

Flutuar, ma non troppo


Depois de rever Nuvens flutuantes, de Mikio Naruse são muitos os pensamentos e muito poucas as palavras para descrever o que se viu e sentiu. Qualquer palavra seria, provavelmente, um insulto ou uma ideia mal expressa. Fica, apesar de tudo uma certeza: muito dificilmente um cineasta filma com tanta ternura as mulheres. Onde Mizoguchi contempla, Naruse acaricia, faz-nos sentir colados ao pathos feminino. Dificilmente um cineasta é capaz de transformar o quotidiano em algo tão belo*. Trágico, mas belo, ou não fosse este um cineasta do real, das traições e das desilusões. Quase que se diria um cinema de conformismo, já que não se coíbe de mostrar e explorar as limitações das pessoas aqui e agora perante uma dada dificuldade. Dir-se-ia que a poesia fica de fora, dando lugar a uma espécie de recriação do real. Flutuar, sim. Ma non troppo.
*excepção feita a Yasujiro Ozu, claro. A depuração formal e a elegância do seu Cinema (será Ozu lento?) conseguem ecplipsar a secura e o realismo de Naruse. Mas esta, provavelmente, é uma mera impressão apriorística.

sábado, janeiro 12

Ideias sublimes


"Pensei que num momento destes teria ideias sublimes"
Construir um filme em elipse absoluta não é novidade. Quando, no caso, falamos de Bresson muito menos. Acontece que em Le diable probablement, mais do que uma elipse, ficamos com uma sensação de vazio infindável e somos acossados por um sem número de questões. Fiquemos por uma: Charles, estudante angustiado, incapaz de adaptar a sua natureza espiritual a um mundo agressivo e dominado pelo choque, acaba numa depressão profunda. Instando um companheiro toxicodepente, morre. Acontece que tal como o título sugere - probablement, ou seja, o campo da incerteza absoluta - nunca chegamos a perceber a sua motivação. Ouvimos um "Nunca hás-de saber no que estou a pensar", seguido de um tiro e Charles jaz inerte no chão de um cemitério.
Será este um filme sobre a natureza do Mal? Afinal, a dada altura pudemos ouvir:
Qui est-ce donc qui s'amuse à tourner l'humanité en dérision ? Oui, qui est-ce qui nous manœuvre en douce ?
Le diable probablement.
Nunca o saberemos. Não obstante, a crítica aos horrores da sociedade industrial é omnipresente, incutindo a ideia de Charles ser um mártir que se imola por, pura e simplesmente, não conseguir aguentar as pressões externas. Nas palavras do próprio, não é um doente. Limita-se a ver o Mundo com clareza. Ironicamente, é um psicanalista a oferecer-lhe a solução final.

quinta-feira, janeiro 10

Paixão, expiação e projecção


A cada revisionamento - e já são muitos - há sempre um momento de Vivre sa vie que me desarma completamente: é aquele em que Nana vê a projecção de La passion de Jeanne d'Arc, de Dreyer. Momento singular onde temos uma síntese quase perfeita* das obsessões do Cinema de Godard: a paixão pelo Cinema, o recurso à citação e consequente metalinguagem, a paixão pela mulher - e logo com Anna Karina, musa do cineasta - devidamente conjugados para produzir um momento sublime: Nana chorando, vendo a paixão de Joana no écran e, porventura, projectando-se ela própria no seu sofrimento, como que antevendo o desfecho trágico que se adivinha.
Quase síntese porque, curiosamente, em Vivre sa vie temos um Godard perfeitamente despojado no mise-en-scène (como que lembrando/antevendo o que o casal Straub-Huillet viria a fazer e já era perseguido formalmente por Bresson), de molde a concentrar-nos numa história de paixão. Não daquelas folhetinescas e sensaboronas. Aqui paixão é sinónimo de expiação, já que somos testemunhas da catarse de Nana, que é empurrada para a estrada da perdição por uma sociedade cega e insensível. Um quase que, por sinal, é, entre muitas coisas, uma metáfora poderosíssima da injustiça social. Um quase que é Cinema em estado puro, enleando-nos, compadecendo-nos e, a final, fazendo-nos partilhar a morte de Nana, como se fossemos nós próprios a fracassar e a viver convencidos da veracidade de uma falsa liberdade.

domingo, janeiro 6

De luto


Faleceu ontem um dos mentores ideológicos desta baiúca: Luiz Pacheco, o escritor libertário. Estamos oficialmente de luto.

quinta-feira, janeiro 3

O homem comum do cinema

"L'homme ordinaire du cinéma ne dirait ici que cet inessentiel*: le cinéma n'est pas mon métier. Je vais au cinéma pour me distraire mais, par hasard, j'y aprends aussi autre chose que ce que le film m'enseignera (il ne m'enseignera que je suis mortel - il m'apprendra peut-être une invention du temps, une dilatation des corps et l'improbabilité de tout cela: je reste en effet constamment non son lecteur mais son serviteur le plus soumis et son juge); j'y apprends donc à m'étonner de pouvoir vivre simultanément dans plusieurs mondes"
Jean Louis Schefer, L'homme ordinaire du cinéma, Cahiers du Cinéma, 1997, p.5
* obviamente, apenas dirá isto se tiver rectidão e honestidade intelectual. Confesso que a parte em carregado me deixou rendido a este ensaio. É uma ideia que tendo a praticar. Aliás, mais do que viver simultaneamente em vários mundos, o homem comum do cinema [pelo menos este agora escreve] vê Cinema em cada esquina. Há muita coisa do mundo real que o acolhe que ele projecta, recordando fotogramas vistos, ficando num limbo onírico. Em qualquer caso, e como diria João César Monteiro, convém não esquecer que O Cinema não me alimenta. Uma perna de borrego, sim.

quarta-feira, janeiro 2

As lombadas dos livros*

Eis uma utilização possível, estendida, como é óbvio, às capas.

*À F., que gosta muito de ler as lombadas dos livros

terça-feira, janeiro 1

Lista 2007

Ano, por via de regra, fracote na generalidade. Como não foi vista tanta coisa como se queria, por pura honestidade intelectual fica não o top 10, mas um top ligeiramente mais curto:
1. Still life, Jia Zhang-ke
2. Letters from Iwo Jima, Clint Eastwood
3. Control, Anton Corbijin
4. Honor de cavalleria, de Albert Serra
5. Luzes no Crepúsculo, Aki Kaurismäki
6. Belle toujours, Manoel de Oliveira
7. Lady Chatterley, Pascale Ferran
Por ver: Eastern Promises e Paranoid Park. Dois pecados dignos de pena capital, obviamente, já que se preza Cronenberg e Van Sant tem ganho admiração por cá ultimamente.
Surpresa do ano, pela positiva, O capacete dourado, de Jorge Cramez e, pela negativa, as reviravoltas nas estreias previstas de alguns filmes. Takeshis já não vem? Manderlay foi o que foi...
Melhor filme visto (que estaria no top 3 se tivesse estreado): Jardins en Automne, de Otar Iosseliani, esse filme que não há modo de estrear. Visto em ante-estreia no sítio do costume e revisto em DVD há coisa de meses (vive la France!), confirma-se como um prazer absoluto no visionamento, sendo igualmente um exercício de realização a roçar a magistralidade do mestre georgiano.