segunda-feira, dezembro 31

Em jeito de "oração"

No Francesco Giullare di Dio podemos ouvir, logo a começar, uma oração em que o bom do S. Francisco agradece tudo à entidade divina. Estas linhas, ressalvadas as devidas distâncias, procuram fazer algo similar: agradecer as granadas mordazes de Mr. Peeping Tom, a nostalgia cinéfila (e não só) do Pedro Correia, as postas cinéfilo-literato-melómanas deste Acossado, os recursos infindáveis do Signo do Dragão e, também, a militância do crítico de serviço, Luís Miguel Oliveira, e do por vezes desencantado Daniel. Obviamente, convém não esquecer o regabofe instaurado por Miss Woody e Miss Allen , o altar da beleza construído pelo Miguel Marujo, bem como o lúcido portista Francisco José Viegas.
Sem eles, o ano blogosférico (o meu, pelo menos) seria uma pasmaceira. São, por assim dizer, os meus bloggers do ano.

domingo, dezembro 30

Estado desta baiúca

Absolutamente vencido pela Lei, algo perfeitamente sintetizado na frase de uma entidade patronal: "mas há pior do que estar um Sábado à noite a comer no Mac, no último fim-de-semana do ano, para depois ir trabalhar?" Rais'partam se não me veio logo à cabeça o estado de espírito do filme do Jarmusch. Três marmanjos de olhar perdido, cabisbaixos e cansados com o que ia à volta deles. Mas sem qualquer vontade de dizer que o mundo é triste, mas belo.

quarta-feira, dezembro 26

O vai e vem*

A cada regresso - e são tantos neste vai e vem louco entre o reino maravilhoso e a selva urbana - sinto-me como uma das personagens de Trás-os-montes: olhando a imensidão do espaço à minha frente, de costas voltadas para todos. Olho para um qualquer ponto perdido no horizonte, tão perdido como eu que, involuntariamente, junto-me à multidão de imbecis que contribui para o desaparecimento de costumes e tradições milenares. Em Trás-os-Montes olha-se com apreensão para a distância que acolheu os filhos da terra. Precisamente a mesma terra que vai chamando por mim, enchendo-me a alma e, acto contínuo, levando ao crescimento do vazio. Até ao regresso, sempre num vai e vem enlouquecedor.
Tal como em Trás-os-Montes, levanto-me e faço-me ao caminho sem destino. Como um nómada.
*uma posta lúcida e a modos que semi-confessional.

sexta-feira, dezembro 21

Feliz Natal

Votos de um Feliz Natal, de preferência acompanhados por muito e bom Cinema.
O escriba de serviço vai mergulhar, literalmente, no Reino Maravilhoso, ansiando pela concretização de um desejo da Midas: editar a obra integral de António Reis e Margarida Cordeiro. A ver vamos.

terça-feira, dezembro 18

Ver Cinema vs Ler Cinema

Se há coisa que deixa qualquer cinéfilo intelectualmente honesto à beira de um ataque de nervos, é uma situação relativamente comum que se resume, no essencial, ao seguinte:
Caio, rapaz minimamente interessado pela causa, afirma conhecer a obra dos clássicos de Hollywood, John Ford incluído. Acto contínuo, Tício que, por sinal, gosta muito de Ford, animado pelas perspectivas de uma conversa interessante, larga perguntas em catadupa sobre obras-charneira, como The Searchers ou Stagecoach. Silêncio. Caio, o neófito interessado, não viu nada de Ford. Confundiu ver com a leitura catálogos, rectius Folhas da Cinemateca dedicadas ao realizador de My darling Clementine sem sequer ter curado de ver os filmes em questão.
Entendamo-nos fazendo uso de simples tópicos:
i) O Cinema, rectius o cultivo do seu gosto e da vontade de descobrir o que se faz à luz do que se fez, valorizando a dimensão histórica da Arte em si, é, no fundo, um acto contínuo de educação do olhar, de molde a criar uma mundividência própria, projectada no real, tendo por base as imagens projectadas no écran*;
ii) O Cinema assenta, principalmente, nas imagens projectadas. Um exemplo extremo: até uma obra em tons de cinzento (César Monteiro dixit) como Branca de Neve obriga à projecção de imagens. No caso, obriga à associação mental das palavras que ouvimos e que acabam por nos obrigar a construir o nosso filme mentalmente;
iii) Acontece que neste fenómeno, contrariamente ao da simples leitura de apreciações críticas sobre a obra de determinados cineastas ou de alguns filmes em particular, processa-se aquando da própria projecção do filme. É um exercício do e para o próprio espectador.
iv) Não se nega aqui a leitura de textos sobre Cinema. Pelo contrário, critica-se apenas a leitura antecipada dos mesmos, já que, inelutavelmente, tal conduta vicia o espectador e, sobretudo, leva a que já vá com uma ideia pré-formada do filme que vai ver (o clássico problema da Vorverständnis, vulgo pré-compreensão). Logo, não vê, necessariamente, pelos seus olhos, mas sim pelos olhos de quem escreveu o texto lido.
v) Um comportamento salutar e mentalmente honesto implica ler depois de ver. Só assim nasce a possibilidade de divergência/concordância pura com a opinião alheia. De preferência fazendo uso de um discurso articulado e com a fundamentação mínima (leia-se, racionalmente defensável, apesar de, em último grau, poder não se concordar com a opinião expendida).
vi) Curiosamente, o ponto v) supra tem inerente a recusa do modelo de Bazin (apresentação-visionamento-discussão), em nome da construção de uma opinião própria (e o mais livre possível) a propósito da interpretação de um filme visto.
* não criticar, por favor, esta absolutização do Cinema ínsita no último período. O escriba de serviço preza-a muito.

segunda-feira, dezembro 17

Histórias do Cinema


Ver o quão Jean-Luc é grande e eu não percebo nada disto.

domingo, dezembro 16

A magia do scope II


Entre a recriação da Marlene Dietrich do Blaue Engel, um nome que evoca uma outra personagem condenada à infelicidade e à perdição (Lola Montés, de Ophüls) e uma sequência inicial que sugere À Bout de Souffle (ademais, Cassard refere-se, em dado momento, a um amigo Poiccard que se deu mal com negócios escuros), o que mais impressiona é a sugestão de Lola ser uma prostituta sem tal nunca ser afirmado. Mais impressionante é estarmos num ambiente em tudo similar à Amsterdam, de Jacques Brel e nunca sermos confrontados com a abjecção ou a depravação. Lola é um conto de fadas, um musical que nunca explode (mas é sugerido constantemente), uma dança constante e um jogo de desencontros traçados a regra e esquadro. Desencontros que começam na partilha de nomes, na vivência de situações similares e no facto de as personagens irem partilhando os mesmos espaços sem, por vezes, terem conhecimento da sua presença efectiva em Nantes. Em suma, um exemplo de perfeição construído sobre um equilíbrio instável.

A magia do scope

Sim, Luís: o Cadillac e as pernas da Anouk Aimée, mas, acima de tudo, a magnificência (perfeição?) da composição de espaços. Se não me engano, o Nicholas Ray queixava-se, aquando da rodagem de Rebel without a cause*, que era muito difícil preencher espaços neste formato, pois não estava habituado ao formato (até quis filmar a P/B, mas por questiúnculas legais não foi autorizado). No caso de Jaques Demy, a graciosidade da câmara - tributária, provavelmente, de Ophüls, a quem Lola é dedicado -, aliada, entre outras coisas, às formas de Anouk Aimée fazem milagres, tal como as coreografias do El Dorado. E assim andamos entre magia do conto de fadas agridoce e um prodígio de ocupação de espaços. Cinema, tão-somente. Como bónus, é ver scope a P/B. Convenhamos, tem outro charme.

* por cá, João César Monteiro teve problemas similares n'A comédia de Deus e acabou por optar pelo formato "clássico", apesar de existirem 3 curtas-metragens - que, a final, foram "testes"/estudos - filmadas em scope. Filmar em scope deve ser complicado.

sexta-feira, dezembro 14

Probabilidades

A probabilidade de encontrar um bilhete de cinema (ou afim) no meio de um livro é algo comum por estas bandas. Afinal, ser leitor compulsivo tem destas coisas. A irrealidade começa quando, no mais insuspeito dos livros (Kreditsicherung, de Reinicke e Tiedtke) aparece um garboso bilhete. No caso concreto, Lola Montés, de Ophuls. Como a versão vista era a alemã, sempre se fez raccord - falhado, claro está - com o manual jurídico. Acontece que entre os movimentos de câmara virtuosos de Ophuls e a arquitectura matemática da Ciência Jurídica teutónica, esta sai claramente a perder.

terça-feira, dezembro 11

"Bater na parede"

Lembro-me de, a dada altura, ter esbarrado no meu primeiro Straub-Huillet (Sicilia!): murro no estômago, soma-se um directo bem aplicado e Ramos Alves ficou KO. Pela primeira vez tinha a sensação de ter chocado de frente com um filme difícil de ser compreendido e que se apresentava, a priori, avesso a tais actividades exegéticas, tal a distância colocada entre ele e o espectador incauto que, em bom rigor, não estava preparado para aquilo.
Anos volvidos, mais sabidote, (sobretudo, com muita coisa vista na bagagem) caí no buraco aberto por La cicatrice intérieure, de Philippe Garrel. Mais do que a sensação de ter batido num muro, fui dominado pela contemplação pura: desde o rosto alvo de Nico fundido-se na areia branca do deserto, passando pelo ritual do fogo de Clementi, tudo redundava numa sucessão de quadros de uma beleza inenarrável. Isto enquanto Nico ia dizendo O König las dir leiten...
O rei certamente não era eu, mas sim Pierre Clementi, que se passeava pelo écran. Apesar disso deixei-me guiar pela magia cromática de um filme de contrastes e símbolos incontáveis. Afinal, há momentos em que o Cinema é bem mais do que uma pura intelectualização ou tentativa de explicação* do que se vê. É, também, um acto de contemplação que roça o irracional, dominando os sentidos e deixando-nos guiar pelo sensualismo dos espectros projectados na tela e que nós próprios vamos projectando vida fora...
É o apelo aos instintos primitvos, à fusão com os elementos que compõem a vida e que, por mero acaso, pululam neste filme ímpar, que, por mais revisionamentos que lhe dedique, subjuga-me e domina-me, pois é uma força da natureza, a mesma cujos elementos são convocados durante a projecção e que acabam por deixar uma cicatriz interior bem profunda neste espectador de ocasião.
*no caso concreto até tenho ideias bem definidas, mas, como dizia Caeiro, pensar incomoda como andar à chuva e a beleza suprema do filme de Garrel faz esquecer a necessidade de pensar muito sobre o que se vê.

segunda-feira, dezembro 10

La Cicatrice Intérieure

sábado, dezembro 8

O Reino Maravilhoso*


Serras ao longe, uma voz ecoando pelos cumes. Vemos um travelling pelas rochas escarpadas, finalizando nuns sinais antigos, pré-históricos e, de súbito, uma criança acariciada pela câmara de António Reis e Margarida Cordeiro, enquanto conduz um rebanho. Eis o início de Trás-os-Montes. Será esta paisagem que vemos que, lentamente, será apresentada de forma profunda ao longo de quase duas horas. Sera esta, passe a expressão, a viagem ao princípio do Mundo, visto pelos olhos de uma criança
Mais do que uma evocação nostálgica das serranias e das suas gentes, mais do que um retrato da vida no reino maravilhoso, Trás-os-Montes funciona como uma recolha de histórias, fragmentos de narrativas que se vão encadeando, misturando real e ficção num objecto de catalogação impossível, onde o real parece transformar-se num sonho. Efectivamente, o carinho com que os cineastas retratam as gentes transmontanas e o facto de sermos conduzidos por crianças, acabam por nos sugerir que estamos perante uma uma fábula sobre a vida em sociedade e as relações humanas.
Mas não só: Trás-os-Montes é também a evocação dos tempos idos em que todo o saber é transmitido oralmente e se vai aprendendo por mimetismo. Talvez seja este o único fio condutor da obra, a par da paisagem rude e agreste, que esculpe rostos e hábitos quotidianos. Em Trás-os-Montes não há tristeza nem sequer conformismo. Apenas o quotidiano e o prazer no desempenho de tarefas domésticas. Daí o seu sensualismo e, também, a evocação nostálgica de um modo de vida verdadeiro, isto é, puro, onde apenas há lugar para companheirismo e solidariedade: o reino dos Homens Bons, os mesmo que se reunem da Domus de Bragança e vão contemplando a paisagem que os rodeia e modela.
Um grito solto pelo silvar de um combóio. Eis o fim deste sonho. Algures pelo amanhecer, as nuvens de fumo do combóio confudem-se com o nevoeiro e as próprias nuvens que habitam os céus. Mais do que um fim, a continuação do sonho, da vontade de resistir a um modo de vida comandado pela desconfiança e pela velocidade vertiginosa. Carpe diem.
Venham os adjectivos (poético, mágico, sensual...), a catalogação (documentário, estudo antropológico, ficção surrealizante...), venha tudo isso, que Trás-os-Montes continuará impassível enquanto obra única e singular, pronta a enfeitiçar o espectador: é um objecto resistente, que luta contra o esquecimento de valores fundamentais, enquanto pugna igualmente por uma forma "pura" de fazer Cinema.
* o facto de gostar de Miguel Torga e ser transmontano de gema não têm muito a ver com estas linhas. Sobre António Reis, é favor consultar o essencial blogue: António Reis

terça-feira, dezembro 4

Control

domingo, dezembro 2

Havia um pai

Um dos meus Ozu favoritos, ou não fosse este o filme em que a distância intensifica as relações entre pai e filho. Tranquilidade, cumplicidade, sincronismo de gestos: perfeição. A mesma que falta a dado momento deste excerto, mas que voltará quando pai e filho se reencontram alguns anos volvidos.