terça-feira, janeiro 30

Kaagaz Ke Phool

O Guru - Guru Dutt, obviamente - esteve na FCG no passado Domingo e eu, infelizmente, não pude revê-lo devido a problemas circunstanciais de saúde. E é pena, porque da primeira vez que vi Kaagaz Ke Phool - cujos primeiros minutos podem ver no vídeo supra - fiquei absolutamente deliciado com o filme e, sobretudo, com a sua maravilhosa banda sonora: é quase impossível não ficar tocado pelas canções que vão desfilando pelo écran. Isto já para não falar do mise-en-abyme ou das elipses que por lá pululam. Agora que tinha a oportunidade de ter, finalmente, um visionamento adulto (porque já tenho uma noção do que é uma elipse ou de um mise-en-abyme e, como tal, tenho um outro nível de leitura do filme), a gripe deitou tudo a perder. Mesmo o transmontano mais resistente como eu não lhe é imune. Fica para a próxima, Guru.

sábado, janeiro 27

A beleza da indiscrição


É impossível não gostar de Hitchcock. Mesmo quando o Mestre faz uso de um dos mais censuráveis hábitos humanos para construir um filme: a satisfação da curiosidade sobre a vida alheia. É precisamente essa a pedra-de-toque de Rear Window. À semelhança de Rope, este é um filme de câmara. Todavia, aqui a exiguidade do espaço é mitigada, graças às objectivas de uma câmara e a binóculos, de forma estender-se às casas dos vários habitantes de um pátio. Suspense à parte, o que mais causa espanto é a facilidade com que Hitchcock constrói um microcosmos apto a representar a vida tal como ela é. Porque o pátio e os seus habitantes são isso mesmo: arquétipos das várias personagens que pululam no espaço urbano. Enquanto que, paralelamente, essa projecção para o exterior é a sábia fuga da claustrofobia que o espaço exíguo do apartamento de Jeff poderia ditar.
A beleza de Rear Window (uma delas, obviamente) acaba, assim, por ser o ir e vir de perspectiva entre o apartamento de Jeff e o espaço exterior, diluído pelos vários dramas que os habitantes do pátio vivem e que Jeff vai observando, naquilo que é um exemplo máximo de mestria na concepção de um cenário.

quinta-feira, janeiro 25

Herr Friedrich Wilhelm Murnau

Se a abrir Der letzte Mann somos colocados perante a questão: Hoje general, Primeiro-Ministro..E amanhã? Sabes o que farás amanhã?, em Herr Tartüff, a final, vemo-nos perante estoutra: E tu? Sabes quem se senta a teu lado?
Atendendo ao facto de ambos os filmes serem contíguos temporalmente, somos assolados, desde logo, pela tentação de considerar que estamos perante um diptíco em que a mesquinhez e a hipocrisia são protagonistas. Em bom rigor talvez não o seja, mas é certo que em ambos somos confrontados com retratos amargos e duros sobre a natureza humana. Em Der letzte Mann era a história do velho porteiro que, após anos de serviço, era colocado a um canto, na casa-de-banho do hotel estendo toalhas aos que dela se serviam, enquanto que em Herr Tartuff temos o retrato da hipocrisia, do falso moralismo e do falso puritanismo. São filmes sobre as máscaras a que recorremos na presença do outro, fazendo-nos passar por algo que não somos - o porteiro que passeia a farda resplandecente num bairro sujo e degradado e o falso padre que se faz passar por santo.
É, de certa forma, o afirmar da máxima do Leviathan de Thomas Hobbes: o Homem é lobo do Homem. Tudo vale desde que seja o Eu a lucrar e nunca o outro. Porque, no Mundo em que vivemos (tal como no de Murnau*), tudo se resume à competição e à satisfação pessoal em detrimento do outro. Duas faces de uma mesma moeda onde a mesquinhez impera, tal como a falta de escrúpulos. O que é um sinal claro de que o seguidismo cego da lei do mais forte tem de, forçosamente, levar-nos a dar um retrato negativo e duro do Homem.
* Rectius, no Mundo destas duas obras, já que, por exemplo, em Sunrise temos um dos mais esperançosos filmes que se conhecem.

quarta-feira, janeiro 24

Um ano de...

Jean-Pierre Léaud em Le Départ, de Jerzy Skolimowski

...recordações, partilha de opiniões e tributo ao Cinema. O Amarcord cumpre hoje o seu primeiro aniversário blogosférico.
Muito obrigado a todos os que por cá foram passando!

segunda-feira, janeiro 22

Scoop, ou do déjà vu

Temos Woody Allen fazendo desfilar as suas neuroses, temos (aparentemente) uma nova diva: Scarlett Johansson (para quem são transferidos alguns dos trejeitos do próprio Allen), temos o regresso assumido à comédia, mas, mesmo assim, é impossível não sair da sala decepcionado. Scoop, para além de funcionar como reciclagem de temas recorrentes na obra de Allen - veja-se, por exemplo, a atracção pelo metafísico de The purple rose of cairo, o gosto pelo detectivesco de Manhattan murder mistery - é, também, a confirmação de que Allen é um autor e gosta desse estatuto.
Com efeito, ao longo de 96 minutos, Woody Allen faz com que a sensação de déjà vu nos invada. Afinal, muitos dos tiques e trejeitos que Splendini, perdão, Allen vai tirando da cartola, já são por demais conhecidos daqueles que vão acompanhando a sua obra. Sejamos directos: Scoop é um filme menor na obra do nova-iorquino. Talvez esta seja um consequência do alucinante* ritmo de um filme por ano que Woody Allen pretende manter. O que é certo é que, em Scoop, o argumento é prevísivel. Em demasia. Tudo se resume a uma sucessão de peripécias bem encadeadas - o que mostra a classe de Allen enquanto realizador - que piscam o olho a vários quadrantes: desde o suspense hitchcockiano, ao filme de fantasmas ou à comédia...
Dê por onde der, Woody Allen, em clara contenção de esforço, faz melhor do que a grande maioria dos realizadores da actualidade. Talvez por esse motivo se dê ao luxo de, conscientemente, fazer passear e impor a sua persona. O que, bem vistas as coisas, é um exercício consciente de narcisismo. Afinal, Scoop é uma espécie de síntese do Universo de Allen e, talvez por esse motivo, o enredo do filme seja o que menos importa.
* ritmo alucinante que, em rigor, não o é. Sobretudo se utilizarmos como objecto de comparação o débito lendário de Rainer Werner Fassbinder na realização de filmes: um a cada 100 dias (aproximadamente, claro está).

domingo, janeiro 21

Paris nous appartient

Paris nous appartient, obra de estreia de Jacques Rivette, foi o produto de um parto difícil. Apesar disso, estamos perante um filme de grande maturidade que, apenas formalmente, pode ser considerado como pertencente à Nouvelle Vague. É certo que vemos as ruas de Paris, tal como alguns dos cineastas que a erigiram (Godard, Chabrol e Demy) ou o gosto pela citação. Mas há um plus: Jacques Rivette.
Nas palavras do próprio, o filme consiste na história de uma ideia, que tem como auxiliar um enredo detectivesco. O que equivaleria a dizer que, ao invés de revelar as intenções no fim da história, o desenrolar da mesma acabaria por aboli-las, fazendo com que apenas existisse o lugar onde a mesma foi filmada: Paris. O que, de imediato, nos põe de sobreaviso sobre esta obra, dado que esta girará sempre entre a barreira invisível que liga o real e o abstracto.
Com efeito, Rivette acaba por mostrar-nos, simultaneamente, a vida boémia de Paris e o sentimento que assolava boa parte dos seus habitantes. Convém não esquecer que estamos na época da Guerra Fria e isso faz-se sentir de forma opressiva ao longo dos cerca de 140 minutos do filme. Esta é uma viagem à paranóia e aos meandros da teoria da conspiração. É o retrato de uma geração alienada, desligada da realidade em virtude de elaboradas elocubrações dominadas pelo medo e pelo terror.
Eis-nos, pois, perante um filme sobre uma ideia. Uma ideia que vai ganhando forma, ao ponto de levar à morte, mesmo que os motivos que levam a tal resultado nunca sejam totalmente revelados. O medo, a paranóia e a incerteza sobre o outro acabam por conduzir ao desligar progressivo da realidade e é esse retrato que nos é dado a ver. A história relativa à encenação de Péricles acaba, assim, por funcionar como fio condutor do filme e elo de ligação das personagens. Todavia, o que mais impressiona é a capacidade de, partindo de dados concretos, promover a abstracção da conspiração que, de certo modo, funciona como uma entidade leviatânica que paira sobre tudo e todos. Como conclusão - se é que, efectivamente, existe uma conclusão líquida - fica a sensação de que a vida é um rio que corre. Que, apesar de tudo o que vai acontecendo, as coisas seguem o seu rumo natural.
Dizia Truffaut que Rivette era o melhor cineasta da geração dos turcos dos Cahiers. O que é certo é que é o menos conhecido da Nouvelle Vague pelo que não será descabido afirmar que cada um dos seus filmes é um tesouro a ser descoberto (ou redescoberto). Paris nous appartient não é excepção.

quinta-feira, janeiro 18

Interferências

Por motivos académicos - e tarefas conexas - a cadência de posts poderá ser afectada nos tempos que se avizinham.
Pelo facto pede-se a compreensão dos leitores.

terça-feira, janeiro 16

"Fugir"



Pressão. Expectivas altas. Toda uma multidão anseando ouvir o que temos para dizer. Um silêncio intímo de criatividade, contrastando com os brados que nos abraçam. A pressão. Sempre ela. A necessidade de fugir, para o vazio, para o silêncio. Uma intíma necessidade de nos encontrarmos connosco próprios, isolados do Mundo que, ameaçadoramente, abre a boca para nos consumir. Uma coisa é certa: em Fellini, o ilusionista e apaixonado pela vida, encontramos sempre uma solução. Ou, no mínimo, o seu princípio. Fugir (metaforicamente falando, como é óbvio) mais do que um fim, é um recomeço.

domingo, janeiro 14

Bogie

50 anos de ausência que, lentamente, deram azo a que ganhasse uma aura mítica. Humphrey Bogart, ícone de Hollywood, faleceu há 50 anos. Famoso pelo seu perfeccionismo extremo, Bogie não teve um início de carreira fácil, já que era sempre contratado como vilão e, concomitantemente, ou era condenado à prisão ou perecia às mãos do protagonista. Eram as regras ditadas pelo studio system. O mesmo studio system que viu a ascensão a protagonista com High Sierra, de Raoul Walsh e que o tornou célebre com filmes míticos como Casablanca (Michael Curtiz), To have and have not e The Big Sleep (Howard Hawks), The maltese falcon ou The african Queen (John Huston) e que o próprio Bogart tentou combater, criando a malograda Santana Productions.
Bogart, o homem, desapareceu há 50 anos. O mito, esse, permanece (a fusão perfeita entre o Bogart mítico e o Bogart actor é, segundo Peter Bogdanovich, In a lonely place, de Nicholas Ray). Não só porque incarnou personagens míticas como Sam Spade ou Philip Marlowe, mas, principalmente, porque a aura de Bogie é inegável. Basta lembrar que o seu desempenho em filmes de série B lhe valeu a homenagem de Jean-Luc Godard em À bout de souffle.

sexta-feira, janeiro 12

Bálsamo


Ver (ou rever) La meglio giuventù, de Marco Tullio Giordana, equivale a embarcar numa viagem de perto de 6 horas onde somos convidados a ser testemunhas da vida dos irmãos Nicola e Matteo. Equivale a ver a beleza da vida: amor, paixão, ideais, morte... Tudo se encontra num círculo perfeito onde cada episódio nos abre um novo capítulo que desenvolve ou encerra o que o precede. La meglio giuventù (título certamente inspirado em título homónimo de uma colectânea de poemas de Pier Paolo Pasolini*), transporta-nos desde os anos 60 até à actualidade, fazendo com que as várias personagens pouco envelheçam (fisicamente) nesse longo hiato temporal. A beleza que delas irradia é tanta que se vê transformada numa auréola de quasi-eternidade. Tal é a sensibilidade e a pujança desta obra, que a expressão La vie c'était l'écran aplica-se-lhe perfeitamente. Porque é precisamente isso que vemos: vida. E fica como máxima o mote de Nicola: na vida tudo é belo.
* Basta lembrar que Giordana é autor do livro e do filme Pier Paolo Pasolini, un delitto italiano.

quarta-feira, janeiro 10

A força da palavra

Tu m'as dis je t'aime,
je t'ai dit attends,
J'allais dire prends-moi
tu m'as dit vas-t-en
Ainda o écran está negro e já temos o mote dado para o que se irá seguir. A escuridão do écran é fulminada pela luz e pela vitalidade da palavra. O resto é conhecido de todos. 105 minutos de puro lirismo, onde as fronteiras entre a palavra escrita e a imagem em movimento se esbatem, levando-nos a acreditar que a arte, pura e simplesmente, não tem quaisquer fronteiras. Sente-se, pressente-se e mostra-se avessa a qualquer classificação. Por um motivo simples: é per se, não carecendo de quaisquer adjectivos que justifiquem a sua vitalidade e a sua beleza. La vie c'était l'écran.

terça-feira, janeiro 9

Ele é um santo



Em Au hasard Balthazar Rober Bresson oferece-nos um curioso exemplo de expiação. É através do olhar do jumento Balthazar, tantas vezes focado ao longo do filme, que o espectador toma contacto com um conjunto de personagens dominadas pelo pecado - orgulho, avareza, inveja, ira, gula, luxúria e preguiça - e que verão esses pecados serem expiados, de forma passiva (acaso Balthazar fosse dotado de racionalidade e seria estoicismo), por Balthazar, um mero jumento que, graças ao puro acaso, vai conhecendo vários donos que, lenta e continuadamente, o vão fustigando e brindando com maus tratos contínuos, acabando por ser testemunha privilegiada das várias relações de amor e ódio que se vão desenrolando.

Sucede também que, no confronto com os restantes animais, Balthazar é sempre apresentado de forma altiva, indiciando a sua superioridade relativamente aos seus iguais (conforme se verifica no Circo, por exemplo). Balthazar é, assim, uma figura ambígua, de tom híbrido, uma vez que, apesar não estar em pé de igualdade com os vários Homens que vai conhecendo, está em plano superior no reino animal. Balthazar poderá, porventura, ficar a meio caminho da antropomorfização. Todavia, o que é certo é que a sua existência é dominada pelo sacríficio e pelo sofrimento. Neste particular, e caso Balthazar fosse humano, dir-se-ia que Robert Bresson corporiza na sua figura a dimensão trágica da existência. Com traços sacrificiais. Porque, como se diz a dada altura, Ele [Balthazar] é um santo. Trabalhou e nunca foi recompensado, à excepção das carícias de paus e chicotes.

Não será à toa que Balthazar surge como contraponto perfeito de Marie. Tal como esta gira entre pureza e maldade (basta ver os sentimentos que nutre por Jacques e Gerard), também Balthazar o fará. Visão redutora é certo, mas parece indesmentível que em Au hasard Balthazar temos uma mundividência maniqueísta. Acontece que, por via de regra, todos os sacríficios são exigidos a Balthazar. Ele que não é o protagonista do filme, mas é, sem margem para dúvidas, o seu fio condutor, servindo de intermediário entre todos aqueles que desfilam no écran.

Au Hasard Balthazar é, assim, um exemplo paradigmático da complexidade latente na frugalidade ascética do Cinema de Bresson

domingo, janeiro 7

Straub-Huillet dixerunt*

"Entrevistador: Não têm vontade de filmar em Hollywood?
Straub: Não vejo nenhuma razão. Com quem? Hollywood não existe mais! E não me venham com Spielberg ou Coppola! Eles fazem filmes como quem sai de uma escola de cinema. Não conhecem o cinema do seu próprio país. Nunca viram, com olhos de ver, um filme de John Ford ou de Grifith ou de Stroheim. Conhecem Fellini e copiam o último Godard. Não tenho a menor vontade de ser produzido por Coppola e ainda menos pelas companhias de petróleo que mandam actualmente. Quando Hollywood era Hollywood, os produtores não eram companhias imobiliárias ou petrolíferas. Eram pessoas que gostavam de espectáculo, ainda que fizessem algumas coisas contestáveis. Em cada dez filmes, podiam dar-se ao luxo de permitir que Fritz Lang ou John Ford ou Lubitsch trabalhassem em paz. Isto acabou! Spielberg, em RAIDERS OF THE LOST ARCH, faz um erro por plano e por corte. Aquilo é montado como um filme de animação. É lamentável! Ele não sabe sequer montar um filme. E Coppola não me interessa porque tem uma vontade de poder e eu não gosto dessas pessoas! O sonho dele é fazer um filme que seja transmitido por satélite e que 500 milhões de pessoas veriam ao mesmo tempo, no mundo inteiro. Mas em que língua seria esse filme? Seria necessário que fosse um filme mudo. Ele que tenha a coragem de o fazer. Nem Goebbels (...) foi tão megalomaníaco. (..)"
in Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1998, pp. 101-102
* in casu (sejamos rigorosos): Jean-Marie Straub dixit

sábado, janeiro 6

Os factos e as lendas

Com The man who shot Liberty Valance John Ford redigiu, de certo modo, o epitáfio do western clássico. Trata-se de uma despedida nostálgica que gira sobre uma lenda. A do homem que matou Liberty Valance. Na realidade foi Tom Doniphon (John Wayne) quem cometeu a proeza, mas cabe a Ranson Stoddard (James Stewart) o mérito de, graças à sua abnegação, ter combatido o Mal. Ficaria na lenda como o Homem que derrotou o Mal, aniquilando o seu símbolo. De certa forma, foi o que sucedeu metaforicamente, já que Tom durante anos se conformara à realidade que conhecia, enquanto que Ranson, um forasteiro recém-chegado à cidade, pugnou desde logo contra o que reputava como injusto. Surge, assim, uma frase com tanto de mítica como de avisada. Tão mítica quanto o Western clássico: When the legend becomes fact, print the legend. As brumas do fumo expelido por Wayne anunciam a analepse que revela a verdade da morte de Liberty Valance. Mas é precisamente nas brumas do esquecimento que a verdade ficou mergulhada. Porque vingou a lenda e a necessidade humana de construir mitos.

quarta-feira, janeiro 3

Monsieur Bresson

Robert Bresson fazia questão em nunca recorrer a actores profissionais*. Optava sempre por amadores que eram submetido a um método rigoroso que consistia na total depuração de todos os traços/tiques de actor que o intérprete viesse a ter. O seu objectivo consistia em transformar o intérprete numa marioneta ao serviço do realizador, a quem cabia a tarefa de ditar todos os movimentos e gestos que o actor teria de tomar. Adicionalmente, Bresson exigia que os actores dirigissem o seu olhar para o chão e debitassem de forma rápida as suas deixas. Tudo isto para satisfazer o objectivo de envolver o espectador no estado de espírito da personagem, não se distraindo com a sua aparência. Grosso modo, ao espectador não cabe o papel de juiz do que se desenrola diante dos seus olhos, mas sim o de simples testemunha de um qualquer processo.
Eis um dos aspectos essenciais do ascetismo do Cinema de Bresson. A frugalidade do mise-en-scène é compensada pelas elipses, pelo tom transcendental da obra, pela utilização meticulosa do som e pela dimensão trágica da existência que que pesa sobre os seus filmes. Ficam obras de grande complexidade onde cada plano é um pequeno mistério que parece flutuar num qualquer Espaço. Bresson é, pois, um nome incontornável da Sétima Arte.
*O que não impediu que Dominique Sanda viesse a fazer carreira como actriz profissional após a sua aparição em Une femme douce.

segunda-feira, janeiro 1

Os melhores de 2006



Eis a lista dos filmes estreados em Portugal em 2006 que, na minha opinião, foram os melhores que passaram pelos cinemas:

Juventude em Marcha, de Pedro Costa - De longe o melhor filme que vi. Difícil de descrever, tal é a sua monumentalidade. Neste particular, subscrevo na íntegra o wishful thinking do Luís Miguel Oliveira. Espera-se que com o passar dos anos, Juventude em Marcha ganhe mais adeptos do que aqueles que vai tendo entre portas.
Les Amants Réguliers, de Philippe Garrel (se a retrospectiva integral que esteve na Cinemateca tivesse mais espectadores, não se escreveriam tantos disparates sobre este filme).
History of Violence, de David Cronenberg.
Dans Paris, de Christophe Honoré (respira nouvelle vague. Mas, pelo menos, tem o mérito de mostrar que se pode construir um filme a partir de referências passadas).
Little Miss Sunshine, de Jonathan Dayton, Valerie Faris.
A Criança, de Luc e Jean-Pierre Dardenne (o realismo cru e duro - absolutamente visceral - dos irmãos Dardenne fez-me fã irredutível do seu Cinema. Mesmo quando não está ao nível das obras que o antecedem)
Miami Vice, de Michael Mann (Mann - ressalvadas as distâncias - é uma espécie de Jean-Pierre Melville dos tempos que correm. Isso diz tudo).
Matchpoint, de Woody Allen.
A Dália Negra, de Brian De Palma (porque gosto muito do film noir e esta revisitação tem muita classe e savoir faire).
O Novo Mundo, de Terrence Malick (é-me muito difícil não gostar de um Malick).
Espera-se que no próximo ano o hiato temporal entre a estreia dos filmes no estrangeiro e a sua exibição em território lusitano seja mais curto. Mas, tendo em conta que Il caimano e Manderlay tiveram muitas estreias marcadas que depois acabam por ser canceladas, parece que nada mudará. Já agora, pedir a exibição comercial de filmes de Hou Hsiao Hsien é muito?