terça-feira, outubro 31

O Rio


The River é um filme de uma beleza indesmentível. Nela Jean Renoir dá-nos nova prova - como se tal fosse preciso - de todos os seus atributos enquanto cineasta.
Este é um filme sobre a Índia onde o lugar comum dos tigres e dos elefantes não tem lugar. É o filme que retrata a visão de Renoir, o espectador atento que procurou transmitir a todos a sua visão deste local remoto. É o filme da eternidade, da efemeridade e da beleza. Em The River, Renoir procura captar a vida em toda a sua pureza. Assim, apesar de estarmos perante uma obra da maturidade de Renoir - o que é plenamente verificável pela precisão e rigor dos travellings - esta é uma obra esperançosa. Mais do que um retrato outonal acerca da existência, Renoir, através da visão da jovem Harriet, procura mostrar-nos a beleza e o encantamento do Amor. Quer na visão das adolescentes, quer na dos seus progenitores, The River acaba por ser um conjunto de variações sobre um único tema, sempre com variantes, mas sempre com o tom humano que desde cedo marcou a obra do cineasta francês.
Contemplação. Eis a atitude dos habitantes do leito do rio. Daí que perante um espírito atormentado, em luta consigo e com o seu corpo, a resposta seja simples: não lutar. Mais do que uma atitude estóica, The River fica-se pela mera observação. Pela quietude. Mas também pelo assombro e pela omnipresença da espiritualidade. Mas também pelo onirismo, conforme se verifica na belíssima sequência da dança nupcial, onde os noivos incarnam duas divindades. Como contraponto, temos as sequências quase documentais onde os locais assumem o protagonismo.
Mas esta é, conforme já se disse, a visão da Índia de Renoir. Surge, assim, uma visão serena, de um estilo de vida contemplativo onde tudo tem um significado e, apesar disso, onde a religião e a crença imperam. Com efeito, este é o filme dos altares sacrificiais, sejam eles a figueira que albergará a morte de Bogey, ou o bosque que ditará a desilusão amorosa. Sobre todos estes universos paralelos impõe-se o rio. Sereno, sempre seguindo o seu curso. Tal como a vida. O rio é a porta de entrada do estranho que alterará a vida de várias adolescentes e será também o cemitério de Bogey. Nele se nasce e nele se morre. Daí que, tal como a vida, flua inexoravelmente para o seu destino. Não pára. Continua. As águas passam, mas fica o Mundo que o viu correr.
E essa é, talvez, a grande mensagem de The River. Mais do que concentrarmo-nos num passado distante, apenas conta o presente, dado que é ele que permite alterar o nosso rumo. O rio é sinónimo de vida. No caso de Renoir, é sinónimo de reencontro com a felicidade. Talvez por esse motivo, The River seja, também, um filme de cores garridas, num exemplo primoroso da utilização do Technicolor. Ou não fosse Jean Renoir descendente de Auguste Renoir.
Realista. Espiritual. Onírico. Métafísico. Eis o rio de Renoir e a vida que ele abarca. O Rio é, pois, a vida com toda a sua beleza e mistérios.

sábado, outubro 28

La vieillesse...


E o belo do pensamento não me acode exactamente pelos mesmos motivos de Claude...

sexta-feira, outubro 27

Fusão

Não há solidão maior do que aquela do samurai, excepto a do tigre na selva, talvez...

Com esta frase - alegadamente pertencente ao Livro do Bushido, mas, na verdade, da autoria de Jean-Pierre Melville - o espectador vê-se perante o traçar de fronteiras do tom e do ritmo de Le Samouraï. Ora, o que mais impressiona nesta frase singela é a sua capacidade para reafirmar a total independência de Jean-Pierre Melville enquanto autor e, simultaneamente, por a nu uma das principais características dos protagonistas do noir: a solidão.
Com efeito, personagens como Philip Marlowe (da obra de Raymond Chandler) e Sam Spade (criado por Dashiell Hammett) sempre tiveram como traço comum o facto de, tal como um herói pícaro, movimentarem-se sózinhos, de modo a resolver os mistérios com que se deparavam. O noir, mais do que uma atmosfera, acaba, assim, por ser também a afirmação (elogio?) da solidão, como única confidente e fiel conselheira.
Todavia, se no noir clássico o herói acaba por movimentar-se a partir dos instintos, contrariamente ao que se verifica no policial de primeira geração (Agatha Christie, Rex Stout ou S.S. van Dine, por exemplo), onde impera a pura lógica, em Le Samouraï vemos, de certa forma, o reunir do melhor desses dois mundos: Jeff Costelo, assassino frio e implacável, pauta a sua conduta por um código rígido, mas acabará por quebrar as rotinas, cedendo às emoções e, desse modo, acabará por selar o seu destino de forma trágica.
Assim, talvez se possa definir esta capacidade de fusão/simbiose como reflexão pós-moderna. Le Samouraï, mais do que um filme sobre filmes, é um filme que sintetiza a tradição prévia, modelando-a e refundando-a. Algo que Melville já vinha fazendo desde o seminal Bob le flambeur.

quarta-feira, outubro 25

Reflexão outonal

Such ingratitude after all the times I saved your life.

Sergio Leone era um verdadeiro mestre de cartografia. Os seus grande planos eram sinónimo do traçar de mapas profundos, capazes de traduzir na perfeição o interior da alma. Mas em The Good, the bad and the ugly, obra que também contém uma profunda reflexão sobre a I e a II Grandes Guerras - veja-se, respectivamente, a luta pela ponte e o campo de prisioneiros - acaba por ser um retrato amargo de um dos aspectos mais negativos do Ser Humano: a volatilidade.
A acção desenfreada e insana que o espectador vê, contém uma afirmação séria e, de certo modo, outonal: em Leone as parcerias são momentâneas e ditadas pelo sabor da conveniência. Blondie, Tuco e Angel Eyes apenas se associarão para encontrar $ 200.000. Apenas o fazem para satisfazer as suas necessidades e a sua cobiça. Não há lugar para o outro. Apenas para o Eu. E, assim, se dá cumprimento a uma velha máxima: no western cabe tudo. Mesmo reflexões sobre a natureza má e mesquinha do Ser Humano.
Adenda: Leone não anda muito longe do plasmado num celebérrimo discurso de Alberto Pimenta: o sacana - permitam-me o eufemismo - caracteriza-se pela disponibilidade para a indisponibilidade.

segunda-feira, outubro 23

Guarda-chuva para quê?

(à guisa de raccord com este post)

Talvez depois de verem (ou, mais provavelmente, reverem) o excerto de Singin' in the rain percebam, finalmente, a beleza de não usar guarda-chuva.

domingo, outubro 22

Cinéfilos uni-vos!!


Para mais informações é favor clicar aqui.

sexta-feira, outubro 20

Marie Antoinette

Kirsten Dunst em Marie Antoinette
Notas prévias: 1) não serão tecidas considerações sobre o rigor da reconstrução histórica. Já Benedetto Croce dizia que era necessário algum trabalho de imaginação para reconstruir realidades passadas e, provavelmente, foi o que Sofia Copolla fez; 2) apenas se aprecia Marie Antoinette enquanto obra cinematográfica.
Sofia Copolla regressa ao grande écran com Marie Antoinette. Trata-se de um projecto ambicioso, ou não estivéssemos perante um filme de época, que recria a corte francesa do Século XVIII.
Nesse particular, Sofia Copolla é bem sucedida, chegando, por vezes, a dar-nos ambiências que trazem à memória Barry Lyndon de Stanley Kubrick. Todavia, contrariamente ao tom barroco da obra de Kubrick, Marie Antoinette franqueia o acesso às corres garridas e berrantes, num perfeito contraste com os rostos hiper-maquilhados, conforme a moda da época. Neste ambiente de excessos e de constantes sussuros e conspirações, movimenta-se Maria Antonieta (uma soberba Kirten Duns), a jovem princesa austríaca que viria a casar com Luís XVI.
Tal como em Lost in Translation, Sofia Copolla explora a incapacidade de alguém se enquadrar numa dada realidade. Desta feita é Maria Antonieta que, através de uma bela sucessão de grandes planos do rosto e do recurso à câmara subjectiva, se vê num Mundo completamente diferente do seu: opulento, faustoso, exagerado. Um Mundo decadente, onde as festas e o jogo constituirão a única escapatória para fugir a realidade que se vive. Esta é a visão da rainha sofredora, que se vê afastada do seu lar e que apenas encontrará consolo nas amizades e nos filhos. Talvez por isso o belo plano de Maria Antonieta sozinha numa varanda, fitando o imenso deserto do hiper-povoado Palácio de Versalhes, se possa considerar uma síntese perfeita.
Poderíamos, até, dizer que este é o filme dos bolos, tantos são aqueles que as cortesãs comem. Indo mais longe, poderíamos dizer que este é um banquete pop. Mas trata-se de abordagens que obliteram o que é dado a ver e, pior, que esquecem a História. Afinal, segundo rezam as crónicas, a Corte de Versalhes era ainda mais exagerada. Voltando ao filme, esses exageros são, apenas, o modo de criar repulsa, de nos fazer sentir o mesmo que Maria Antonieta, uma estrangeira no seu Mundo, prisioneira de regras ocas e que carecem de sentido. Precisamente por carecer de sentido, é que veremos Maria Antonieta agindo da forma mais natural possível, tentando ser, não se refugiando em máscaras. Algo que, aliás, apenas conseguirá junto dos filhos.
Assim, bem vistas as coisas, mais do que uma leitura histórica ou política, esta é a visão pessoalíssima de Sofia Copolla. Marie Antoinette não é uma análise histórica. Pelo contrário, é o filme sobre o quebrar das regras e do protocolo. Daí que não haja qualquer espanto no recurso a nomes como New Order ou The Strokes para figurar na banda sonora. Copolla nunca quis fazer um filme histórico no sentido tradicional do termo. Quando muito, procurou desconstruí-lo ou, se tanto, conferir-lhe vestes de modernidade. Daí que beleza, encanto e sedução sejam três palavras que assentam que nem uma luva a esta obra.
Em França houve direito a apupos - o que só se entende como manifestação do já lendário chauvinismo francês - e, por outras paragens, fala-se em ópera pop. Trata-se de críticas puramente destrutivas e que recusam o esforço de análise. Marie Antoinette é uma obra de ruptura na continuidade, dado que é a afirmação de Copolla enquanto autora.

quinta-feira, outubro 19

A imensidão do espaço (aparentemente) finito II

Fotograma de Le Trou

Dificilmente se pode conceber um filme tão directo como Le Trou de Jacques Becker. Neste filme que nos conta evasão falhada de um grupo de presidiários, a frugalidade impressiona. Sem banda sonora, diálogos directos, humor acutilante e actores amadores. Perante tanta simplicidade, avulta o buraco (Le trou), esperança de liberdade, suprema ilusão. O buraco que vai crescendo gradualmente, ocupando cada vez mais o écran, fazendo com que nos esqueçamos da simplicidade desta obra.
A banda sonora, acaba por ser o bater ritmado de pás e picaretas no betão, os mesmos que abrirão o buraco. Um ruído que aumenta à medida que o próprio buraco cresce e, concomitantemente, diminui a distância da evasão. No final, tudo se gora, ficando os evadidos virados contra uma parede, de tronco nu. Talvez esta seja a maior das coerências: num filme despido de artíficios - de molde a que o espectador se concentre no que verdadeiramente interessa, o buraco - este é o fim mais lógico. Mais do que as traições e do que a típica solidariedade que habita o noir - e de que Touchez pas au grisbi de Becker tinha sido um belo primeiro ensaio - o espectador apenas se concentra no vazio, no escuro, ou seja, no desconhecido que o buraco esconde.
Pese embora a funcionalização de todas as condutas relativamente ao buraco construendo, a frugalidade esconde uma fina teia de relações complexas, escondida pela troca de olhares cúmplies e/ou desconfiados, bem como pelo típico calão do milieu que, apesar de tudo, tenta mascarar a inevitável tragicidade que se abaterá sobre os evadidos. O buraco funciona, pois, como o aumentar do espaço finito da cela, abrindo portas para a ilusão e para a exploração do Mundo que se vai desenhando à frente do olhar sôfrego dos presidiários.

quarta-feira, outubro 18

Lamento neo-abjeccionista

Luiz Pacheco, o Libertino. Em bom rigor, será mais libertário.
Perguntava-se por aqui o porquê de já ninguém trabalhar em reacção nos tempos que correm. É, de facto, algo lamentável. Basta pensar que essas reacções em cadeia, na década de 60, fizeram com que a criatividade fosse puxada ao seu limite (Fellini, Visconti, Antonioni, Bergman, Godard, Truffaut, e a lista não mais acabaria...).
No que toca ao Cinema Português, atendendo ao panorama confrangedor onde não surge ninguém capaz de o projectar internacionalmente, tirando o eterno Manoel de Oliveira e, actualmente, Pedro Costa e Teresa Villaverde, urge animar as hostes. Ora, perante este cenário paupérrimo, julgo que há que lamentar o facto de o Cinema em Portugal não dispor de uma figura como Luiz Pacheco*.
* A César o que é de César. Tempos houve onde Portugal dispunha de alguém capaz de animar o reino lusitano: João César Monteiro, esse génio ignorado.

segunda-feira, outubro 16

Mundo de sonhos


Somewhere over the rainbow
Way up high,
There's a land that I heard of
Once in a lullaby.

Somewhere over the rainbow
Skies are blue,
And the dreams that you dare to dream
Really do come true.
(E.Y. Harburg)

Eis o que canta Dorothy logo no início de The Wizard of Oz, essa obra que encanta qualquer um, dos oito aos oitenta. Um filme que encanta pela sua ingenuidade, pelo seu mundo mágico, por um Technicolor deslumbrante, mas, também, porque, intencionalmente ou não, este Somewhere over the Rainbow funciona, na perfeição, como uma síntese daquilo que o Cinema também é: algo para lá do arco-íris, um Mundo onde os sonhos se tornam realidade. Nem que seja por breves instantes. O Cinema é emoção, é a Verdade 24 vezes por segundo, mas é, também, um palco de ilusões.
Nuno, Wasted Blues, meus caríssimos companheiros de sessão, o que se vos oferece dizer? :-)

domingo, outubro 15

Little Miss Sunshine - ninguém fica para trás!


Um pai que dá palestras sobre sucesso profissional. Uma mãe que se desvela pela família e pelo seu irmão, um professor que falhou a tentativa de suicídio. Um avô heroinómano expulso do lar de idosos e dois filhos, um que deixou de falar até se tornar piloto da Força Aérea e uma jovem que sonha ser rainha de beleza. Todos juntos numa velha carrinha Volkswagen para ajudar na concretização do sonho da filha, através da participação no concurso Little Miss Sunshine. Eis o mote para um dos mais curiosos e mais bem conseguidos filmes dos últimos tempos: Little Miss Sunshine.
Apesar de recorrer às vestes da comédia, Little Miss Sunshine é um road movie atípico que versa sobre a depressão, o fracasso e a capacidade de viver com esses traumas. Ou seja, por trás da leveza com que nos é apresentado, Little Miss Sunshine oferece uma visão complexa sobre a sociedade americana, através dos vários elementos da família Hoover. Dito de outro modo, este é o revisitar do ideal americano de vida, num retrato duro e cru. Com efeito, a dupla estreante Dayton e Valerie Faris oferece-nos um filme que abdica, em grande medida, de artíficios, de modo a dar-nos um retrato sobre esta família atípica que, apesar do falhanço final, acabará por conseguir a união e a sua redenção enquanto grupo.
Little Miss Sunshine acaba por ser o filme da nova realidade que se ergue por cima dos escombros das carreiras pré-definidas, das metas a atingir cegamente. É o filme que põe em confronto aberto vencedores e falhados e que põe a nu o sonho americano, mostrando as suas fraquezas e virtudes, plasmadas nesta família disfuncional. Temos o confronto de dois mitos americanos o da competição e o da viagem estrada fora. Dois mitos que, aqui, conjugam-se de forma a dar um retrato mordaz e preciso do estado da sociedade americana. E o retrato é mau: uma sociedade deprimida, de feridas frescas, tal como as feridas nos pulsos de Frank.
Ora, o que mais impressiona em Little Miss Sunshine é a sua genuinidade. Esta não é uma obra que se arrogue títulos de obra-prima. Todavia, através da sucessão de piadas bem doseadas e do desenvolvimento das próprias personagens, o espectador acaba por disfrutar de um incisivo retrato da realidade norte-americana. Esta acaba, e certo modo, por estar reflectida no concurso de beleza: uma competição selvagem, onde tudo respira artificialidade e roça o grotesco, onde as concorrentes corporizam estereótipos americanos - sem descurar a cantora country. Ora, será precisamente nesse mundo simiesco que a família até aí desagregada acabará por unir-se.
Ora. isto permite afirmar que, apesar de tudo, este é um filme optimista: a família que inicia a viagem é um conjunto de indivíduos desagregados e à beira do abismo. Será na estrada que se perdem e que acabam por se reencontrar, conciliando-se consigo próprios e como família. Por que ninguém fica para trás e, também, porque apenas nas horas más somos capazes de descobrir o melhor de nós.
São obras destas que fazem falta. Quer pela sua aparente simplicidade, quer pela eficácia com que transmitem uma mensagem, mas, sobretudo, porque mostram que um grande filme não carece de grandes meios para ser realizado. O Cinema independente norte-americano está em grande forma. Little Miss Sunshine comprova-o na perfeição. Ou não fosse este o melhor filme estreado nos últimos tempos em Portugal.

sexta-feira, outubro 13

Filme da treta


Teatro, televisão, rádio e, agora, cinema. Toni e Zezé vê-se, assim, transpostos para o grande écran. Ora, tendo em conta que realizador e produtor - Leonel Vieira, aquele que estragou a oportunidade de fazer um grande filme em A Selva - afirmam que esta obra procura atrair novos públicos para o cinema portugues, causa perplexidade o facto de António Feio (Toni) afirmar que acabaram por optar por uma linguagem não muito cinematográfica (sic). Sendo assim, há mesmo que pedir à equipa que afine a orquestra perante incongruências destas e, sobretudo, há mesmo que perguntar se o mero intuito lucrativo justifica isto. Será que o Cinema português precisava do Filme da treta?
Sendo assim, este é o Filme da treta ou uma treta de filme?

quinta-feira, outubro 12

A beleza do anacronismo aparente


Entre Jules et Jim e Les deux anglaises et le continent distam, apenas, 9 anos. Onde o primeiro foi uma obra marcante na afirmação da estética da nouvelle vague - onde, como sempre, a fotografia de Raoul Coutard faz maravilhas -, o segundo foi considerado, à época, como um filme absolutamente menor. Tendo em conta que ambas as obras mergulham no universo de Henri-Pierre Roché e, formalmente, se adoptou a leitura do texto (tal como em Jules et Jim), num belo exercício de cinema "literário", causa alguma estranheza o fracasso.
Ora, o passar dos tempos tem destas coisas e permite uma avaliação mais clara das coisas. Se em Jules et Jim teremos, porventura, o ocaso da audácia criativa de François Truffaut, Les deux anglaises et le continent marca a entrada numa nova fase da carreira do cineasta: a do Homem-Cinema, onde Truffaut quer transformar cada filme num espéctáculo grandioso.
Neste particular, Les deux anglaises et le continent é, talvez, a mais pictórica e gráfica das obras de Truffaut, fazendo com que cada plano, para além de recriar a ambiência de quadros impressionistas, é, também ele, uma súmula vertiginosa de sensações e de impressões. Mas esta é também uma obra gráfica. Do mesmo modo que a câmara vai descobrindo a forma dos corpos esculpidos por Rodin, será também a descoberta do corpo e do prazer. Ora, numa obra intimista e interiorizada, onde se destaca a sublime interpretação de Jean-Pierre Léaud, será essa descoberta o romper do colete de forças que dominam a mentalidade puritana da sociedade inglesa do princípio de século.
Este é o filme da distância, da aproximação e, consequentemente, do desejo e da sensualidade. Deste modo, é o contraponto perfeito de Jules et Jim. O turbilhão da vida e o elogio da amizade que conferiam uma certa ligeireza ao filme (apesar do tragédia que se antevia) é substituído aqui pela vitalidade e pela interiorização. Com efeito, por vezes tem-se a noção que as três personagens principais - Claude, Anne e Muriel - vivem com o ritmo de um livro. Ora, eis uma falsa pista: é esse tom de certo modo distanciado que permite que também o espectador possa colocar-se em condições de sopesar os vários contrastes que pululam no filme.
Trata-se, pois, de um filme de grande elaboração e, mais importante, um filme de total maturidade. Assim, não é por acaso que a última fala do filme seja a de um Claude, olhando para a sua imagem reflectida num vidro, exclamando: J'ai l'air vieux aujourd'hui. Uma obra-prima a descobrir.
Agora a explicação do fracasso comercial: por via de regra, os críticos concentraram-se no romantismo exacerbado da obra, bem como na fiel reconstrução de época, o que obnubilou aspectos essenciais, como a homenagem ao Cinema mudo e, também, a reflexão profunda sobre duas tradições diferentes: a insular e a continental. Mas, de certa forma, nada a que não se esteja habituado. É bem mais fácil criticar aspectos superficiais, em vez de procurar ir mais longe na análise da obra. Eis um tópico de reflexão...

quarta-feira, outubro 11

Tarkovsky sobre o Cinema

O Cinema é uma arte infeliz porque depende do dinheiro. Não só porque um filme é muito dispendioso, mas também porque é comercializado, tal como os cigarros, et cetera. Mas, se o Cinema é uma arte, essa perspectiva é um absurdo: seria sinónimo de que a Arte é boa apenas se vender bem.
O filme para o grande público não pode ser poético. Alguns filmes foram vistos por milhões de pessoas, mas isto aconteceu nos primórdios do Cinema mudo, quando cada novo filme atraía a curiosidade das pessoas. Hoje é difícil surpreender o espectador e os bons filmes não são vistos pelas massas.

Convennhamos que dá que pensar...

segunda-feira, outubro 9

O Génio em estado puro


Persona é sinónimo de máscara, de papel social. Basta atentar no facto de, em tempos idos, ser essa a designação da máscara que os actores usavam nas representações teatrais. É, pois, uma máscara, algo capaz de disfarçar o nosso Eu. Daí que Persona de Ingmar Bergman seja um filme sobre esse desdobramento, sobre a projecção do Eu e sobre a manipulação da personalidade alheia. É o filme dos grandes planos dos rostos etereamente belos de Liv Ulmann e de Bibi Andersson, mapas em constante mutação, em virtude dos sentimentos que as vão dominando. Mas é, também, um dos mais acabados exemplos de metalinguagem que, num jogo demoníaco, nos levará a duvidar se nos vimos dentro de um filme, dado que, logo a abrir, vimos o aquecimento de um projector.
Talvez este seja um filme avesso à interpretação, talvez a sequência inicial seja a cristalização de elementos desenvolvidos durante o filme - que redundaria, assim, na elipse perfeita - ou, pura e simplesmente, talvez esta seja uma pura sucessão de imagens que mais não são do que os versos iniciais de um poema belíssimo.
Uma coisa é certa, é mais um dos exemplos da mestria e genialidade diabólicas de Mestre Ingmar Bergman.

domingo, outubro 8

Na guerra não se chora nem se adormece

Ana Moreira em Transe

Teresa Villaverde já nos tinha habituado a um realismo cru, onde não há lugar para filtros de qualquer espécie. Se Os mutantes fora uma pedrada no charco onde se afirmou a pedra-de-toque do cinema da realizadora: a capacidade de pegar numa dada matéria social, nos seus habitantes e de colocá-la no écran, Transe acaba por ser o retomar dessa premissa, superando-a.
Em Transe, viagem demencial ao Inferno da prostituição e ao lado mais negro e vil do ser humano, Teresa Villaverde dá um passo em frente, apesar de retomar o estilo de Os mutantes. Está lá toda a violência, o mais das vezes tornada abstracta, seja no rosto petrificado e lívido de Sonia (uma sensacional Ana Moreira), seja na projecção num qualquer objecto, também lidamos com uma personagem que mais não é do que um estrangeiro na sua própria terra: Sonia. É nessa incapacidade de fixação, na falência da possibilidade de se considerar pertencente a um grupo que começa o caminho para a perdição, com o abandono da Rússia natal.
Cada vez mais despojada de si e do seu eu, Sonia acabará por guardar apenas o nome, não o revelando aos acompanhantes de ocasião. O nome é, pois, o último reduto da dignidade, começo da personalidade, funcionando como o último refúgio de uma criatura que fez uma viagem ao fim da noite. Com efeito, tal como nas obras de Céline, Sonia vê-se no centro de uma realidade demencial, abjecta, suja e ladeada pela malvadez.
Esta é a história de Sonia. De mais ninguém. O título já o indiciava: transe, ou seja, o estado em que um indivíduo, privado da sua personalidade, actua como se um espírito estranho se tivesse substituído a ele. Teresa Villaverde conduz, assim, um brilhante exercício de depuração: à medida que Sonia vai cedendo e perdendo as marcas do seu eu, também o espaço fica mais reduzido. Até se chegar ao barracão, a última morada, onde Sonia acabará prostrada na cama. Fechada num espaço exíguo, o que não impede a quase fusão com a alucinação que nos acompanha desde o início. A final, apenas sobram ruínas e escombros.
Entre o real e o sonhado, Transe é uma experiência ímpar, onde a violência carnal do inferno de Sonia está em contraste perfeito com os belos planos onde a Natureza é chamada a desempenhar papel preponderante. Entre o real e o sonhado, eis o estado intermédio em que Transe coloca o espectador, que se vê num mundo de trevas, onde os corpos que se vão movimentando mais não são do que espectros do que foram outrora.
De certa forma, é algo paralelo ao que se passa em Der Letzte Mann, onde o confiante porteiro acabou por perecer, esquecido, numa casa-de-banho. Também Sonia caiu esquecida, longe de tudo e de todos.

sábado, outubro 7

A imensidão do espaço (aparentemente) finito

Fotograma de Lady in the water

Mais do que o solilóquio em tons de fábula que Lady in the water encerra, o que é deveras impressionante no filme de M. Night Shyamalan é o espaço onde se desenrola a acção. O complexo de apartamentos, sendo o território onde decorre toda a acção, acaba por funcionar como o cenário de um filme de câmara, onde a piscina, sendo o centro geográfico deste mapa, é um altar onde se procura a purificação e a libertação. Pelo meio, temos o complexo de apartamentos, curioso mapa onde cada fracção, mais do que mera projecção do seu habitante, é um Mundo apto a ser explorado.

Imponente, este espaço aparentemente finito, acaba por encontrar a projecção, rectius, o seu desenvolvimento numa piscina, que mais não é do que a porta para um Outro Mundo. Para além de ser dos mais curiosos cenários vistos nos últimos anos, a forma como as várias células comunicam, seja através de corredores ou portas, contribui para nos dar um tom de aconchego quase familiar. Algo que tem tudo para ser frio e distante, acaba por dar-nos conforto, e, simultaneamente, faz-nos sentir prisioneiros graças a esses vasos comunicantes. O filme é lucidamente triste, mas este mapa mundi que representa o complexo de apartamentos mostra o toque de Shyamalan enquanto esteta. Acaso fosse mais explorado este pormenor e talvez esta pudesse ter sido, noutros moldes, a recriação do cenário barroco e obsessivo de Le procès de Orson Welles.

sexta-feira, outubro 6

A Dália Negra, o revisitar do Noir

Fotograma de The Black Dahlia
Antes do mais, cumpre salientar que, para tecer qualquer apreciação crítica acerca do valor de The Black Dahlia enquanto filme, urge pôr de lado quer os méritos do romance homónimo de James Ellroy quer a fidelidade desta adaptação ao romance em que se baseia.

Brian De Palma é um profundo conhecedor do sub-mundo do crime e admirador confesso do noir. Obras como Scarface, The untouchables ou Carlito’s way comprovam-no à saciedade. À partida, De Palma depara-se com uma tarefa de monta: adaptar um celebrado romance policial e revisitar uma das maiores lendas de Hollywood, o infame homicídio da Dália Negra. Pode-se dizer que De Palma logrou alcançar a empresa a que se propôs. E fê-lo com distinção.
Em The Black Dahlia, o espectador, ingressando nos bastidores da Hollywood da década de 1940, regressa, também, à ambiência do noir. Com efeito, De Palma, evoca imagens que povoam a nossa memória, como sejam a de vários indivíduos fechados numa sala com um cigarro nos lábios ou um grupo de polícias envoltos no vapor das ruas contemplando um cadáver, bem como dos clubes de jazz ou sessões de cinema em grandes salas.
Mais importante, De Palma, ao longo de cerca de duas horas, graças ao seu tradicional recurso a um narrador em off, vai-nos fazendo coleccionar os vários pormenores que permitirão deslindar a autoria do homicídio macabro. E, neste particular, o recurso à câmara subjectiva e à analepse revela-se sobremaneira eficaz, fazendo-nos atentar nos pormenores essenciais para resolver o mistério. Pelo meio, sempre com um ritmo apreciável e com a acção minuciosamente doseada, julgamos ter reencontrado uma arte em extinção nos tempos que correm: o travelling. Na verdade, ao longo de todo o filme, a câmara de De Palma parece pairar sobre Hollywood, fazendo-nos deslizar entre cenas, de plano para plano, graças a movimentos de câmara graciosos, preciosos e milimétricos.
Temos, assim, o contraste perfeito com a violência da jovem degolada, ou do fero combate entre o Senhor Fogo e o Senhor Gelo ou mesmo dos motins pelas ruas de Los Angeles. Fogo e Gelo. Duas personagens, mas também, duas marcas indeléveis desta obra, que corre entre o gelo, isto é, a precisão e mestria de De Palma e o fogo, a emoção que vai guiando Bleichert, seja na admiração por Blanchard, seja na atracção por Madeleine ou na paixão por Kay.
Obsessão. Eis uma palavra que resume na perfeição este filme. Quer porque permite descrever a importância da Dália Negra na vida dos detectives Blanchard e Bleichert, quer porque permite descrever a busca de perfeição a que De Palma se lançou. A mesma obsessão que permitirá um (quase) mise en abyme, graças à projecção dos filmes em que a Dália Negra entrou. Um espectro, um fantasma, a Dália Negra é, assim, uma densa névoa que se abate sobre todos, projectando-se no infinito e perpetuando-se na memória. Uma Dália negra, projectada no écran, evocada na memória colectiva e objecto de filme.
The Black Dahlia, filme visualmente esplendoroso, graficamente violento e assustadoramente hipnótico. São obras destas que mostram a vitalidade do Cinema e nos fazem acreditar quer no seu passado, quer no seu futuro. Porque revisita o noir, prestando-lhe homenagem, mas sem cair na subserviência.
E, desligando-nos da obra de Ellroy - e com isto volto ao princípio - podemos concluir que estamos perante uma obra ímpar, mau grado os pecados na adaptação do clássico moderno de Ellroy. Também este The Black Dahlia é um clássico moderno.

quinta-feira, outubro 5

Rififi, o ponto de partida

Fotograma de Du rififi chez les hommes

O cinéfilo que se depare com o livro Du rififi chez les hommes de Auguste le Breton, para além de se recordar da excelente adaptação homónima de Jules Dassin, terá o prazer de revisitar o milieu que povoa filmes como Bob le flambeur de Jean-Pierre Melville - em que le Breton coloaborou no argumento - ou Touchez pas au grisbi de Jacques Becker.
Por vezes, a promiscuidade entre literatura e cinema - o exemplo paradigmático será Samuel Fuller, romancista e cineasta - tem destas coisas: foi preciso que um francês conhecesse sucesso com a edição de um livro sem ter de se socorrer de pseudónimos anglo-saxónicos - algo brilhantemente parodiado entre nós por Dinis Machado, perdão Dennis McShade - para que a produção de policiais disparasse. O resultado é por demais conhecido: a França pode gabar-se de ter um Jean-Pierre Melville, cineasta absolutamente perfeccionista, o rei do cool e, mais importante, alguém capaz de desconstruir o noir, tal como Leone fizera com o western.
O Noir, tal como o western, para além de ser um género cinematográfico por excelência, tem a virtualidade de abarcar tudo o que se quiser abordar, tal é a sua plasticidade e elasticidade. No caso do Cinema Francês, o noir, corporizado em Bob le flambeur, acabou por ser o primeiro filme formalmente pertencente à Nouvelle Vague. Corria o ano de 1955. E não é por acaso que Godard, Truffaut e Chabrol se revelaram grandes fãs do género.

Sublime redenção

Dean Martin em Rio Bravo

Um homem entra num saloon, trémulo e pouco confiante. Ignorado e ridicularizado por todos, Dude (Dean Martin) verá um dos presentes lançar uma moeda para um escarrador. É para lhe pagar uma bebida. Vencido pelo vício, rende-se à humilhação e apanha a moeda. Acabará por ser preso pelo sheriff Chance, depois de o tentar agredir.

Num filme que assenta num dos pilares básicos da ideologia do western - a solidariedade - Howard Hawks acaba por dar-nos um dos mais sublimes exemplos de redenção. Dude, o alcoólico, precisará descer ao nível mais baixo para recuperar a auto-confiança e a crença nas suas capacidades. Inicialmente confrontado com uma esmola no escarrador, Dude acabará, posteriormente, por não ceder, redimindo-se, assim, perante si e perante toda a Comunidade. Algo que, aliás, é um dos alicerces deste filme. Basta atentar que o sheriff Chance teve de contar com o auxílio de um jovem pistoleiro, de um alcoólico e de um velho coxo para poder impor a Lei. Trata-se, pois, da redenção dos proscritos, dos marginalizados que, qual fénix renascida, têm em Rio Bravo lugar de destaque.

Aliás, não deixa de ser sintomático - e altamente simbólico - as alcunhas das várias personagens do filme: Chance, Dude, Stumpy e Colorado. Mais do que um sinal de rejeição do invidualismo, estas alcunhas acabam por ser um dos sinais de coesão deste grupo irmanado e reunido por mero acaso. Porque, o mais das vezes, apenas o esforço conjunto é recompensado.

quarta-feira, outubro 4

A mais bela declaração de amor

Fotograma de Johnny Guitar

Johnny:
How many men have you forgotten?
Vienna: As many women as you've remembered.
Johnny: Don't go away.
Vienna: I haven't moved.
Johnny: Tell me something nice.
Vienna: Sure, what do you want to hear?
Johnny: Lie to me. Tell me all these years you've waited. Tell me.
Vienna: All those years I've waited.
Johnny: Tell me you'd a-died if I hadn't come back.
Vienna: I woulda died if you hadn't come back.
Johnny: Tell me you still love me like I love you.
Vienna: I still love you like you love me.
Johnny: Thanks. Thanks a lot.

Este diálogo admirável - que viria a ser retomado por Jean-Luc Godard em Le petit soldat - é, talvez, a mais bela declaração de amor já filmada. Sem qualquer artíficio técnico, através do "mero" recurso ao olhar dos interlocutores somos testemunha de algo belo: todo o amor que ambos sentem mantém-se igual, tal como no primeiro dia em que se conheceram.
Cinema é Emoção e Johnny Guitar, enquanto western absolutamente apaixonado e arrebatador, é um dos mais belos exemplos do esplendor da Sétima Arte.

Desconstrução de um género

Fotograma de The good, the bad and the ugly

Não deixa de ser sintomático que alguns dos melhores westerns sejam peças que, pura e simplesmente, torneiam as regras que dominam o género em que se inserem. Com efeito, não é por acaso que Johnny Guitar - talvez o mais belo filme de sempre - coloca duas mulheres como principais contendoras e em que os bons aparecem vestidos de negro. Este carácter insubmisso de Johnny Guitar, obra maior de Nicholas Ray, de forma subreptícia, acaba abrir a porta à crise da moralidade que qualquer western contém.
Se Nicholas Ray acabou por fazer uma mudança na continuidade, seria Sergio Leone quem viria a desconstruir o western clássico. Fazendo uso de personagens amorais, em Leone temos uma visão amarga do Homem, uma criatura que faz e desfaz amizades ao sabor da conveniência. É, também, com Leone que surgirá o iconográfico homem sem nome, ele que, inicialmente, é uma personagem que vai agindo ao sabor das circunstâncias, para, a final, acabar por ter tiradas capazes de nos levar à reflexão - I've never seen so many men wasted so bad, dir-nos-á, contemplando a carnificina de uma batalha por uma ponte.
Leone, profundamente admirador dos westerns clássicos - não é à toa que no seminal Once upon a time in the West, temos referências a Shane, Johhny Guitar, High Noon ou Duel in the sun, desconstrói o género, sublimando-o. É precisamente esta a pedra-de-toque da evolução do Cinema enquanto Arte: é um produto histórico e acaba, forçosamente, por ter de se ancorar em tudo o que foi feito anteriormente, para poder progredir.
Porque para desconstruir um género é necessário conhecer bem o objecto de estudo em causa.

segunda-feira, outubro 2

Duelo nos pântanos

Burl Ives e Christopher Plummer em Wind across the everglades

O Cinema de Nick Ray é o Cinema do(s) conflito(s) e de todos aqueles que, por algum motivo, vivem à margem da sociedade - veja-se, aqui, o retrato doce dos índios seminole, corporizados em Cory Osceola.
Sem fugir a esta trave mestra, Nicholas Ray assinou em 1958 uma das mais curiosas obras-primas da sua filmografia: Wind across the everglades. Com efeito, tendo como pano de fundo a Miami do princípio do século XX, Ray, sob as vestes de um filme ecologista avant la lettre, aproveita para delinear um breve estudo sobre as contradições da natureza humana. Colocando como contendores um caçador de aves (Burl Ives) e um jovem professor de Biologia (Christopher Plummer), teremos a oportunidade de ver o duelo surdo destes dois homens que, paradoxalmente, se odeiam e se admiram. Tendo como pano de fundo os sempre belos e perigosos Everglades, Nick Ray mostra-nos um caçador fero e temerário que sobrevive à custa da caça ilegal. Perante o seu pragmatismo, teremos todo o idealismo do jovem Professor que apenas quer aplicar a Lei a todo o custo.
Num Mundo em que não há lugar para um ente abstracto - como sucede com o comando geral e abstracto que a Lei é - veremos uma escalada progressiva da hostilidade, até chegarmos ao duelo final em que o caçador decide acompanhar o Professor até à cidade para ser julgado. Apenas imporá uma condição: remará, mas não indicará qual o caminho a seguir. Neste frente-a-frente obstinado, a teimosia do Professor, tal como a do Caçador, custará a vida a este útlimo. Será nessa altura que poderá contemplar as aves a voar, verificando, finalmente, toda a beleza que matava. Paralelamente, o Professor ficara triste, pois admirava este rival feroz.
Uma vez mais, Nicholas Ray dá-nos uma obra pejada de reviravoltas inesperadas e, simultaneamente, não temos um herói com que nos identifiquemos de imediato. Na verdade, se o idealismo do Professor merece simpatia, a sua obstinação que, em último grau, conduz à morte de muitos dos que o auxiliam, levam-nos a franzir o sobrolho. Em qualquer caso, salta à vista toda a mestria de Ray enquanto cineasta. Tal como em The lusty men, ficção e documentário interligam-se na perfeição, servindo o documentário para simbolizar tudo aquilo que vemos. Seja uma ave a levantar voo, seja uma víbora a aniquilar uma presa, seja uma luta entre crocodilos, tudo contribui para, mau grado partirmos do concreto, sermos conduzidos à abstracção do que se vê. Filme essencialmente simbólico, Wind across the everglades é (mais uma) obra-prima de Nicholas Ray. Como sempre o écran vibra de emoção e hipnotiza o espectador, sendo de salientar, também, o recurso à música tradicional para acentuar o tom documental do filme.
Mais importante, é flagrante o contraste entre o tom vivo das imagens documentais com o tom mais, digamos, apagado, da caracterização das personagens - maxime do caçador Cottonmouth. Um mero indício que a Morte pairava sobre elas e que acabaria por vingar. Convém não esquecer que no Cinema de Nicholas Ray, regra geral, todo o filme é um intenso pathos que culmina com a morte de alguém. Desta feita, que o vilão quer o aparente herói estão irmanados nesse pathos. O de Cottonmouth acaba com a Morte. O de Murdock continuará, com os remorsos por estar na origem da morte de Cottonmouth.