terça-feira, maio 30

Ad provocationem VII

"Nicholas Ray c'est le Cinéma"
Jean-Luc Godard

domingo, maio 28

Um local solitário

Humphrey Bogart e Gloria Grahame em In a lonely place

Nicholas Ray sempre mostrou simpatia por inadaptados, fossem eles rebeldes ou não (Rebel without a cause). In a lonely place não é excepção.
Dixon Steele (sublime Humphrey Bogart) é um escritor que se recusa a trabalhar num projecto que não gosta. Cínico, temperamental, Dixon está em plena travessia do Deserto, dado que não tem logrado alcançar nenhum sucesso. Acaba por ser-lhe oferecido o trabalho de adaptar um livro e, como não tem vontade em lê-lo, pede a uma empregada de um restaurante que o acompanhe a casa para lhe contar o a história. Despedem-se e, horas depois, Dixon é acordado por um detective, seu velho amigo, que lhe comunica a o homícidio da rapariga. Dixon é o principal suspeito.
É nessa altura que conhece Laurel (Gloria Grahame), por quem acabará por se apaixonar, naquilo que mais não será do que um mero idílio temporário. Durante esse idílio, veremos os aspectos mais obscuros de Hollywood: desde a ingratidão dos jovens produtores (não é à toa que se chame Junior) para com estrelas do passado. Uma Hollywood que manda para o caixote do lixo todos aqueles de que já não precisa. É a Hollywood do studio system, aquela que Ray abominava e que Bogey tentou combater com a sua Santana Pictures.
E Dixon é Ray: partilha do seu temperamento, dos seus ideais e da sua visão negativa da fábrica dos sonhos. In a lonely place, comummente classificado como um clássico do film noir, é a visão dessa farsa do studio system. Vimos a Hollywood das glórias efémeras, do utilitarismo, da prossecução de objectivos meramente individuais, onde todos desconfiam de todos. E será nesse antro de perdição ou caso, prefiram, de sujidade, que teremos o privilégio de ver a amizade desinteressada entre Dixon e o seu agente, o amor verdadeiro entre Dixon e Laurel, a amizade entre Dixon e o seu velho camarada de armas...
In a lonely place, filme com as vestes do film noir, vai mais além, superando-o: é um filme sobre emoções verdadeiras, sobre o lugar do verdadeiro artista em Hollywood. É a própria visão de Ray sobre Hollywood. Apenas o homicidio será o ponto comum ao noir típico. In a lonely place é um filme honesto, verdadeiro: todas as emoções existem e fazem com que o espectador se identifique, desde logo, com as personagens.
E a par dessa honestidade, temos toda a mestria de Ray: In a lonely place é uma pérola do mise-en-scène, da iluminação (que nos faz lembrar o expressionismo alemão, que, aliás, neste particular, influenciou decisivamente o noir), dos diálogos e dos movimentos de câmara.
E teremos um fim obscuro, típico de Ray. Com tudo resolvido e Dixon inocente, o idílio cessa, tal como cessa o amor. e aí ouvimos os belos versos de Walt Whitman pela voz de Laurel:
"I was born when she kissed me
I died when she left me
I lived a few weeks while she loved me"
E ficará uma dúvida: a dada altura, Dixon pensava colocar estes versos no argumento que estava a escrever e, mais tarde, será Laurel a pronunciá-los, equanto Dixon se afasta para o seu recanto solitário. Acaso teremos visto um filme dentro do filme?
Uma coisa é segura: vimos uma das obras máximas do Cinema.

A cobardia em exame

Richard Burton e Curd Jurgens em Bitter Victory

O Cinema de Nicholas Ray é um cinema pleno de confrontos e oposições.
Bitter Victory poderá ser um desses exemplos, dado que tem como pano de fundo o conflito entre oficiais britânicos em pleno deserto, enquanto levam a cabo uma missão de importância vital. Esse conflito mais não é do que a projecção de um diálogo havido em momento prévio na messe dos oficiais: o Major Brand (Curd Jurgens) vê o Capitão Leigh (extraordinário Richard Burton) a falar com a sua mulher. Eis o início do conflito e a força motriz de toda a película. Desconhecendo o porquê dessa conversação, Brand não mais tolerará a presença de Leigh. Sente-se inseguro, com medo e, consequentemente, tudo fará para o eliminar.
E será no deserto, o grande desconhecido, que o conflito se intensificará. A Guerra que decorre lá longe e na qual os soldados de Leigh e Brand estão envolvidos será sempre secundária, como que transformada numa abstracção. Veremos, apenas, a guerra pessoal entre Leigh e Brand. Apenas ela interessa e será ela que nos permitirá ver duas personagens absolutamente díspares: Leigh, um absoluto nihilista com um quê de anacrónico (O século X é moderno de mais para mim) e Brand, major de secretária, à procura da glória, como meio de tornar o seu nome duradouro.
Esse sonho de glória (efémera?), aliado à insegurança, leva a que procure eliminar Leigh: abandona-o junto dos feridos, não o avisa que irá ser picado por um escorpião, decide deixá-lo só para abraçar a Morte. E, assim, os típicos conflitos de Ray ganham um elemento novo: o principal leit motiv deste é motivado pela cobardia de Brand, que fará sempre uso dos golpes mais baixos para tirar Leigh de cena.
E será em todos esses momentos em que Leigh fica abandonado à sua sorte que o vento do deserto assumirá o protagonimo. Não temos o deserto poético de David Lean, mas sim um deserto duro e cruel. Aqui o vento mais não é do que o elemento que o procura limpar, fazendo com que recupere a sua pureza, não deixando marcas dos que por ele passaram (The desert is clean como nos diria El Aurens).
O mesmo vento que trará a Morte e a suprema das ironias: Leigh, em pleno estertor e já moribundo, protege Brand do Ghibli, naquele que é um dos mais belos momentos de sempre do Cinema: Leigh protege Brand clamando I always contradict myself!
E são estas contradições que fazem de Ray e dos seus personagens algo inesquecível, tal como são as suas alterações imprevísiveis do rumo do enredo. Brand recebeu a sua medalha, mas num acto peculiar, acaba por condecorar um manequim. Os mesmos manequins suspensos, à imagem de enforcados, que serviram de pano de fundo ao genérico e que recuperam o protagonismo no fim.
Quase que se diria que é Ray a relembrar-nos que mais não somos do fantoches nas mãos de um qualquer sistema, da guerra ou, talvez, do destino.

quarta-feira, maio 24

Cinegenia

Alain Delon em Le Samouraï

Alain Delon foi dado a conhecer ao Mundo enquanto actor em 1960, tendo-se afirmado de imediato como uma das principais estrelas do cinema francês.

Todavia, ficará célebre com o seu périplo italiano: trabalhou com Visconti (Rocco e i suoi fratelli e Il Gattopardo) e Antonioni (L'Eclise), tendo regressado à França Natal para alcançar o sucesso merecido. O seu desempenho em filmes policiais valeu-lhe o reconhecimento popular, salientando-se Le cercle rouge e, sobretudo, Le Samouraï, ambos de Jean-Pierre Melville. Se o imaginário do cinéfilo estava preenchido pelo angelical Rocco ou pelo apaixonado Tancredi, o rude e frio Jeff Costelo permanecerá como um dos seus melhores desempenhos.

Em data mais recente, foi o protagonista de Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard, naquele que é, sem margem para dúvidas, o reconhecimento da sua importância para o cinema francês e, também, Mundial.

Conforme dizia em comentário há alguns dias: da mesma forma que há pessoas fotogénicas, há pessoas "cinegénicas". Delon é, certamente, um desses casos.

Alain Delon em Rocco e i suoi Fratelli

domingo, maio 21

As palavras de um Mestre*

"(...) Je trouve qu'il est tragique qu'un créateur, tout à coup, change radicalement sa façon de raconter les choses, car cela veut dire que l'une des deux formules, la nouvelle ou l'ancienne, n'est pas la bonne. Il est essentiel que le dernier film ressemble au premier, absolument. Je ne sais pas si c'est mon cas autant que je le désirerais; mais, pour moi le créateur idéal (j'aime mieux employer le mot «créateur» que le mot «réalisateur» ou le mot «auteur» puisque notre langue n'a pas un mot vrai pour dire ce que nous sommes, ou tout au moins ce que j'éssaie d'être quant à moi, puisque j'aime de plus en plus écrire et tourner) eh bien, le créateur idéal est celui qui a forgé une oeuvre exemplaire, une oeuvre qui sert d'exemple. Non pas de d'exemple de vertu ou seulement de qualité, non pas dans ce sens où l'on dit quelqu'un exemplaire parce que tout ce qui est exemplaire, pour un créateur, c'est que tout ce qu'il a conçu soit condensable en 10 lignes de 25 mots chacune qui suffisent à expliquer ce qui'il a fait et ce qu'il était "

Jean-Pierre Melville

* desde já as minhas desculpas pela transcrição no original. É o que dá ser adepto da máxima italiana "tradutor traidor" (Traduttore, tradittore) .

E agora para algo completamente diferente...

...venho dar notícia de duas coisas:

i) Tenho colaborado com o Blog Blog Blog, tendo sido publicado dois textos meus até à data:
Caro lmarchao, uma vez mais, obrigado pelo convite para colaborar com o Blog Blog Blog.

ii) Fui honrado com uma carta aberta (em resposta a um texto meu), a cujo autor, Miguel Domingues, faço a mais do que devida vénia (salvé companheiro!):
Conforme poderão ver, o texto do Miguel Domingues é repleto de sabedoria, está muito bem escrito e é dotado de uma argumentação poderosa e de difícil resposta.
A escrita sobre cinema no Amarcord seguirá dentro de algumas horas. Mais coisa, menos coisa.

quinta-feira, maio 18

Cardinale, uma Força da Natureza

Claudia Cardinale em Once upon a time in the West
Uma das melhores definições que se podem dar a propósito da grande actriz italiana Claudia Cardinale será, certamente, aquela afirmação memorável de Guido em Otto e mezzo: Claudia fazes bater o meu coração como se fosse um liceal.
Trata-se de algo que traduz de forma perfeita as aparições com que somos brindados. A entrada em cena de Cardinale obriga a centrar as atenções nela. Foi a esposa dedicada em Rocco e i suoi fratelli, a musa de Guido em Otto e mezzo, a sensual Angelica de Il gattopardo, a prostituta com coração de ouro em Once upon a time in the West, a cúmplice da loucura de Fitzcarraldo e a sua ópera em plena selva amazónica...
Em todas essas aparições, teremos sempre a oportunidade de ver a graciosidade em estado puro. De toda elas, a mais luminosa será, provavelmente, a de Once upon a time in America. A fotografia de Tonino delli Colli é, uma vez mais, portentosa e deifica Cardinale. O olhar vazio de Jill será sempre um contraste perfeito relativamente ao desejo que provoca em todos os que com ela convivem, tal como é inesquecível a frase final dita por Cheyenne: "You know what? If I was you, I'd go down there and give those boys a drink. Can't imagine how happy it makes a man to see a woman like you. Just to look at her. And if one of them should pat your behind, just make believe it's nothing. They earned it. "
E se escolhemos o Western de Leone, é por uma razão simples: pela primeira vez uma actriz tem um papel principal num dos seus filmes e tal opção é memorável. Cardinale excede-se, supera-se e gela-nos com o seu olhar simultaneamente vítreo e sensual. Se em Otto e mezzo o nosso coração bateu como o de um liceal, no Western pós-moderno de Leone ficámos estarrecidos e esmagados pela tenacidade de Jill, a mulher da vida que se converteu, abandonou o passado e transformou-se numa mulher lutadora.
Concluindo, acho que podemos concordar com John Carpenter: Todos tivemos uma paixão por Claudia Cardinale. Efectivamente, resulta impossível ficar indeferente a esta actriz. Com a sua entrada em cena, esquecemos tudo o resto e o nosso ritmo cardíaco sobe.
Presença, carisma, beleza, talento...as qualidades são muitas e resultam numa mistura explosiva, da qual resulta uma das lendas do Cinema: Claudia Cardinale, uma Força da Natureza.
Claudia Cardinale em Otto e mezzo

terça-feira, maio 16

Todo o Mundo numa bicicleta

Enzo Staiola e Lamberto Maggiorani em Ladri di biciclette

Apontado por muitos como uma das obras máximas do neo-realismo, Ladri di biciclette é um filme sobre emoções humanas.
Na Itália do Pós-Guerra, o emprego é um bem escasso e apenas o facto de possuir uma bicicleta permitirá a Antonio trabalhar a colar cartazes. A bicicleta, metáfora de sonhos e esperanças que traz a crença num futuro melhor e que levará à dor angustiante da incapacidade de ganhar o seu sustento e da família.
A bicicleta, símbolo da libertação e de prisão, será uma faca de dois gumes. Com efeito, após o furto da máquina, Antonio embarcará numa verdadeira peregrinação por toda a Roma, à procura da sua salvação, a sua bicicleta, passaporte para o emprego e para a felicidade. Antonio, homem sério e honesto envidará todos os seus esforços, que sairão sempre malogrados: irá à Polícia, onde lhe dirão que há coisas mais importantes no Mundo do que uma bicicleta.
Esta banalidade do filme é indiciada, de certa forma, pela deixa de um dos polícias: quando o seu superior lhe pergunta pelas novidades, responde Niente. Una Bicicletta. E será essa banalidade que permitirá viajar pela Roma do Pós-Guerra, a Roma das periferias, sem infraestruturas, onde os habitantes pululam sem destino, bem como a Roma do centro, onde todos lutam entre si, roubando, mentindo e escarnecendo do próximo. Uma Roma que mais não é do que um mercado de objectos em segunda mão, tal como as inúmeras vendas de rua que invadem a cidade.
Será este ambiente hostil o berço da estreita relação entre Antonio (Lamberto Maggiorani) e Bruno (Enzo Staiola). Veremos a crescente esperança de Bruno em encontrar a bicleta e o desencanto de Antonio por não o fazer. A bicicleta vira obsessão. E se veremos inúmeros grandes planos da máquina, também veremos muitas bicicletas à distância, indiciando quer o desejo de Antonio, quer a impossibilidade em atingir o seu fim.
Atormentado pela necessidade de ter emprego, Antonio decidir-se-á pelo furto e será detido por populares diante do filho Bruno. E será o olhar angustiado e as lágrimas convulsivas deste que levam a que Antonio não seja encaminhado para a Esquadra. Momento tocante em que Bruno perdoa o Pai e este lhe dá a mão, aceitando o destino fatal. Ante escassos laivos de solidariedade, todos se desinteressaram do drama banal de Antonio e é esse desinteresse que motiva e desenvolve a relação tão estreita de Antonio e Bruno: comungam do mesmo fim. E será perante uma cidade adversa que darão as mãos, lancando-se à estrada, sempre na crença de um futuro melhor.
Não vimos os típicos postais de Roma. Vimos a Roma das vielas e travessas, dos locais pouco recomendáveis (algo que Pasolini recuperaria com a temática dos borgate e dos ragazzi di vita), mas esquecemos tudo isso. A pureza da relação entre Bruno e Antonio a tanto obrigou.

Ad provocationem VI

Da mesma forma que desconstruiu o Western, Sergio Leone sublimou-o, elevando-o a patamares nunca atingidos.

sábado, maio 13

Casablanca

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman em Casablanca

"Quem o vir impassível ou já perdeu a alma, ou já perdeu o coração, ou já perdeu ambos. É ser humano de companhia a evitar cuidadosamente." João Bénard da Costa in Folhas da Cinemateca
Em Casablanca lidamos com todo o tipo de pessoas: espiões, refugiados, bandidos, oficiais Nazis e da França de Vichy. Um dos principais centros desta cidade cosmopolita e perigosa é o "Rick's", bar onde viremos a conhecer um homem frio e distante, que não deixa de mostrar desprezo pelos nazis (Rick, numa das performances inesquecíveis de Humphrey Bogart).
Será em Casablanca, porta do deserto e do degredo para uns (como Rick) e antecâmara da libertação para outros tantos (como Ilsa), que teremos o privilégio de ver uma das mais belas histórias de sempre: a história de Rick e Ilsa (deslumbrante Ingrid Bergman). Uma relação que tem como despoletador o inesquecível As time goes by. A canção que marcou os dois apaixonados, numa idílica Paris, a Paris boémia e dos cafés, cidade luz e cidade dos amantes (we'll allways have Paris dirá Ilsa).
Uma Paris que conhecemos num belo flashback, em que contrasta o desespero do Rick de Casablanca (motivado pela audição de As time goes by) com a alegria venturosa daqueloutro de Paris. E é este um dos cernes de Casablanca: Casablanca será a cidade dos contrastes, plena de peripécias e de personagens curiosas. E tal como vimos a saber que Rick e Ilsa têm um passado, As time goes by terá a virtualidade de chamar a atenção para o facto de todos terem passado. Todos foram a Casablanca por algum motivo, seja para alcançar um futuro venturoso ou para exorcizar os fantasmas que os acossavam.
Para além disso, teremos algo mais óbvio: Casablanca é um mini-teatro do conflito Mundial que à data se desenrolava (algo que, aliás, o genérico inicial já anunciava). Efectivamente, estará sempre latente a tensão entre totalitarismo (o III Reich) e liberdade (os EUA), tendo como pano de Fundo a neutralidade da França de Vichy. E, deste modo, Michael Curtiz, a par de uma belíssima história de amor, coloca a tónica em algo mais vasto e mais preocupante: a guerra, não sendo despicienda a célebre cena em que no Rick's se canta A Marselhesa, naquele que é um piscar de olho memorável para La Grande Illusion de Jean Renoir.
Será este acumular de peripécias, de temas e de personagens uma das imagens de marca deste filme intemporal. Tal como permanecerá intemporal o súbito acordar de consciência de Rick, prevalecendo o dever sobre o Amor. Rick é, de certo modo, um herói pícaro ou, se se preferir, um anti-herói. E tal como em La Grande Illusion a solidariedade humana prevalecia, Casablanca não deixará de reiterar a mensagem: o Capitão Renault, fiel colaborador dos Nazis acabará por ajudar Rick, naquele que é o princípio de uma bela amizade. E, novamente, veremos Rick a entrar nas brumas, desta feita não nas brumas de um passado obscuro e triste, mas na clandestinidade da Resistência.
Casablanca é o arquétipo do studio sistem, tal como é o protótipo de tudo aquilo que um filme deve ter: Amor, traição, comédia, suspense e, acima de tudo, Humanidade. E como nunca é de mais repetir:
"(...)
Woman needs man
And man must have his mate
That no one can deny
It's still the same old story
The fight for love and glory
A case of do or die
The world will always welcome lovers
As time goes by"
Herman Hupfeld

quarta-feira, maio 10

A persistência da memória

Victor Sjöström e Ingrid Thulin em Smulltronstället
Do mesmo modo que os relógios em Dalí têm formas fluidas e disformes, também neste brilhante filme de Bergman o tempo joga um papel decisivo. Um relógio sem ponteiros que aparece e inquieta Isak (fantástico Victor Sjöström) num pesadelo, o relógio que, a final, era de seu pai e lhe ficara gravado na memória. Os ponteiros que, apesar da ausência, lembramo a desnecessidade de marcar o tempo, da sua fluidez e da sua relatividade...e, simultaneamente, insinuam a passagem do tempo, num exercício de comunicação verdadeiramente paradoxal e demoníaco.
E tudo isto a propósito de um velho professor em vias de receber o jubileu. O mesmo professor que, no caminho para a cerimónia final reencontrará todas as suas memórias. Idoso de aspecto afável, vimos a descobrir, graças aos seus desconcertantes sonhos, que é exactamente o contrário do que faz crer ser. Com efeito, Isak é um rotando falhanço, quer humano, quer profissional: desde o esquecimento do juramento de Hipócrates, passando pela recordação da morte cirúrgica da mulher. E o castigo foi impiedoso: a solidão.
A mesma solidão que motiva os inúmeros sonhos e recordações. Sonhos estranhos, onde a morte é omnipresente e Isak nunca será jovem: será sempre o Isak de hoje, em contraste fero com a magnificência de Sara (sensacional Bibi Andersson), plena de vida e beleza. Tivemos a oportunidade de ver o correr célere do tempo de mãos dadas com a morte. E, como se fosse preciso, Bergman relembrou-nos algo que por vezes esquecemos: a solidão é o princípio da morte.
Prova disso mesmo é a tentativa gorada de aproximação ao filho e à nora (uma serena e deslumbrante Ingri Thulin). Isak já não é nada excepto o cadáver adiado que procria...e todo o ritual do jubileu mais não foi do que um funeral de corpo presente, tal como o tivera sido o sonho atroz em que Isak, vivo, agarrava o Isak morto. Surreal, fantasmagórico, inverosímil, mas, acima de tudo, certeiro. Bergman, sempre com a precisão de um Miguel Ângelo, soube dar-nos (mais) um exercício filosófico-existencial desconcertante.
Morangos Silvestres é sinónimo de enterro do Espírito, da Alma. Não há lugar a cenários verdadeiramente oníricos, uma vez que estes são puros pesadelos. Na verdade, nada do que parece é: Isak não saboreará a doçura dos morangos, tal como não soboreou os prazeres da vida. Tal como não foi Isak aquele que vimos projectado no espelho: foi o seu fantasma.
Um fantasma acossado pela memória. E será essa persistência do nosso consciente, lembrando-nos da celeridade da vida e da necessidade de a viver vertiginosamente que leva a que não desejemos dizer (como Isak):
Estou morto, apesar de vivo

domingo, maio 7

Uma Guitarra do tamanho do Mundo

Rui Gomes e Isabel Ruth em Verdes Anos

Muitos são os filmes que se podem definir pela sua banda sonora. Um deles será, certamente, Verdes Anos de Paulo Rocha, retrato agridoce de uma Lisboa simultaneamente urbana e provinciana, uma Lisboa que oprime, que é hostil, vazia e desértica.
Sobre o desenrolar dessa trama, a desventura de Júlio e Ilda, sobressairá em primeiro plano, o som único da Guitarra de Paredes. Uma guitarra que nos embala, infligindo-nos a dor da morte, o calor da alegria, o vazio da solidão. A mesma Guitarra que acompanha estes jovens sem destino nem rumo, condenados ao desentendimento e à tragédia. E se a beleza estética das imagens de Verdes Anos é inegável, sobressaindo a quase omni-presente esplanada do Vá-Vá, centro operacional de reuniões do Novo Cinema Português, será sempre o som do Mestre a guiar-nos. Paredes, homem de gesto tímido, dotado de uma simplicidade inaudita e virtuoso da guitarra.
Voamos sobre Lisboa, topamos com a vertigem e dureza dos sentimentos. Sentimo-nos humanos e descobrimos todo um Mundo num simples acorde ou dedilhar de cordas. O mesmo Paredes que acompanhará a caminhada solitária de Andreia pelas ruas de Lisboa (em Os mutantes de Teresa Villaverde), fazendo-nos sentir toda a dor da mãe adolescente, pequena criminosa e ser humano votado ao esquecimento.
E é essa a magia de Paredes. Todo o espectro de sentimentos está em cada um dos seus acordes, lembrando-nos da nossa condição de Ser Humano. Uma guitarra que não é, apenas, lusa, mas, também, Universal, tal comos todos os sentimentos que nos faz experimentar a cada vez que a ouvimos.
Tão Universal, que chega ao ponto de (também) ser Cinema.

sexta-feira, maio 5

O deserto da Alma

Harry Dean Stanton em Paris, Texas

Perturbador, perturbante e obsessivo.
Paris, Texas é uma das mais desconcertantes viagens às profundezas da Alma Humana, espelho de memórias, oceano de incertezas e vazio de afectos. Algo que, logo desde o início se pode antever com as belíssimas panorâmicas do deserto texano, em perfeita simbiose com a simples e pungente banda sonora de Ry Cooder, fazem a ponte entre o verdadeiro deserto e a total ausência de memórias de Travis, viajante do deserto, fugitivo e peregrino à procura do seu Ser.
Incapaz de falar, Travis (sensacional Harry Dean Stanton), mau grado ser "redescoberto" pela família, procurará sempre a fuga em frente. A Humanidade perturba-o e, como tal, apenas lhe resta a estrada para o vazio.
De forma magistral, Wim Wenders, naquele que poderá ser definido como um excepcional exercício psicanalítico, fornece-nos, gradualmente, as chaves para o deslindar desse mistério. Um exercício em que a alienação será personagem principal. Desde o deserto do Texas, passando pela vastidão da paisagem durante as inúmeras viagens, teremos um dos mais perfeitos retratos da alienação social e emocional. Algo que é feito através da desconstrução do road movie clássico (de que Easy Rider também tinha sido exemplo de desconstrução) e do progressivo desenvolver de relacionamento humano de Travis.
A mesma alienação que, em paralelo com os sentimentos de Travis, veremos reflectida quer na paisagem, quer nos inúmeros planos de Houston onde podemos ver o deserto urbano: grafitis, grandes prédios, num ambiente que oprime e obsta ao relacionamento.

Natassja Kinski e Harry Dean Stanton em Paris, Texas

E aí temos um momento de verdadeira catarse. Travis encontra a ex-mulher, agora a trabalhar num peep show, e num momento agridoce explica o porquê do abandono do lar: amor obsessivo. Um amor que o levou a abandonar todos os empregos para estar com a mulher, que o levou a algemá-la, acorrentá-la, a ter ciúmes...até ter atingido a total ausência de sentimentos, momento em que abandona o lar, à procura do grande desconhecido, irmão gémeo da sua Alma.
Um relacionamento temporário, já que após a reencontro entre mãe (uma enigmática Natassja Kinski) e filho, Travis regressa ao grande vazio. E nunca deixará de ser curioso o facto de o pomo da discórdia e motivo para a separação (o filho do casal), anos mais tarde, ter impelido Travis a procurar a mulher, para a voltar a ligar ao filho.
Apenas ele, homem alienado e desprovido de sentimentos não terá lugar nesse quadro. E a consciência de que não tem lugar numa familia feliz é a mais dura das sentenças que alguém se pode auto-impor.
Travis não foi votado ao ostracismo. Ele próprio é que se desligou de tudo e de todos.

terça-feira, maio 2

Viver cinematograficamente ou da solidão do cinéfilo

Jacques Perrin em Nuovo Cinema Paradiso

Le cinéma substitue à notre regard un monde qui s'accorde à nos désirs
André Bazin

Qualquer cinéfilo está perfeitamente habituado à rotina de se encaminhar sozinho para uma sala de cinema. Acto de militância ou não, a tentativa de encontrar refúgio numa sala escura onde são projectados bonecos de luz (na doce expressão de Romeu Correia) mais não é do que uma fuga da realidade.
Procuramos encontrar um porto de abrigo, algo a que nos possamos apegar, mas, lá no fundo, não deixamos de ser, também, Cinema. Godard mostrou-o brilhantemente ao apontar a sua câmara de forma directa para o espectador em Le mépris. Mas não era preciso tanto.
Acontece que o refúgio que procuramos, o mais das vezes, redunda num avolumar das dúvidas. Vimos? Não vimos? Será que a realidade que vemos é, efectivamente, aquela que nos é mostrada ou haverá algo para além do que vemos e sentimos, como demonstrou Antonioni no perturbante Blow up? Mas, mau grado o adensar das dúvidas, não deixamos de ser impelidos para a sala escura. É o fascínio, a mística, enfim, a curiosidade da criança que temos em nós. E será sempre com um brilhozinho nos olhos que veremos a sucessão de imagens projectadas, hologramas animados, espectros que nos assombram, fantasmas que nos perseguem.
É um Mundo que satisfaz os nossos desejos e, ao mesmo tempo, espicaça a nossa curiosidade. Fugimos da realidade quotidiana e passamos a fazer parte de outra. Somos cinema, pensamos cinema e - pasme-se! - chegamos ao ponto de viver cinematograficamente. Sem dar conta disso somos envoltos numa teia intrincada de personagens que nos assombram e consolam. Somos cinema e, num acto egoísta, acabamos muitas vezes por recusar companhia para ver Cinema. É certo que muitas vezes esta é interessante, transformando o pior dos filmes em algo bom, mas o vício cinéfilo impele-nos para a solidão. Afinal, não é só a escrita, como dizia José Cardoso Pires, um acto solitário. Ver Cinema também o é.
Uma vez acabada a projecção e acesas as luzes, abandonamos o nosso santuário, não sem que desçamos a avenida e voltemos a casa com o espírito enriquecido quer pelo que vimos, quer pelo que reflectimos. Uma doce e quente alegria enche-nos a alma e, concomitantemente, o grande vazio assola-nos. Uma coisa é certa: o cinema não acabou com o fim da projecção. Continua em nós, atormentando-nos e consolando-nos.
Razão tinha Truffaut quando dizia que os cinéfilos eram pessoas doentes.

BB

Brigitte Bardot em Le mépris
Je t’aime totalement, tendrement, tragiquement


As palavras ditas por Paul a Camille no fabuloso Le Mépris definem na perfeição esta actriz francesa, Brigitte Bardot, ou tão-somente, BB, aquela que inicialmente deu, literalmente, o corpo em Et Dieu créa la femme de Roger Vadim, transformando-se numa das principais bandeiras do cinema francês e numa sex symbol à escala planetária.
Mas foi Godard quem, genialmente, aproveitou tão portentosa figura para desconstruir (a transfiguração com a peruca preta) e, simultaneamente, consolidar uma das maiores lendas do cinema Mundial. Na verdade, é em Le mépris que BB surgirá como a verdadeira mulher fatal, alvo de cobiça entre os homens, enquanto se passeia indolentemente pelo plateau desprezando Paul, seu marido.
A mulher fatal que, graças à mordacidade de Godard, interrogará Paul. "Gostas das minhas coxas? Gostas do meu traseiro? Gostas das minhas pernas? Gostas dos meus seios?" eis as perguntas com que se depara Paul (e, em bom rigor, qualquer espectador).
Perguntas feitas com a altivez e serenidade dignas de um ser em plano superior. O desprezo que Camille, rectius, BB lança a todos os que se atravessam no seu caminho mais não é do que a consequência da sua altivez, qual primus inter pares. Plena se sensualidade (exponenciada pelas sequências de nudez), Bardot não deixará nunca de se guiar pela frieza, numa mistura explosiva de beleza, sensualidade e desejo.
E a resposta de Paul não podia ser outra excepto aquela com que começámos:

Je t’aime totalement, tendrement, tragiquement