segunda-feira, fevereiro 27

Als das Kind Kind war...

Bruno Ganz em Der Himmel über Berlin

Porque, lá bem no fundo, não deixamos de ser crianças, em vestes de adultos,
Porque, lá bem no fundo, não deixamos de querer viver,
Porque, lá bem no fundo, queremos aquilos que não temos,
Porque, lá bem no fundo, temos saudades do que deixámos de ter:

"(...) Als das Kind Kind war,
wußte es nicht, daß es Kind war,
alles war ihm beseelt,
und alle Seelen waren eins (...)

Als das Kind Kind war,
war es die Zeit der folgenden Fragen:
Warum bin ich ich und warum nicht du?
Warum bin ich hier und warum nicht dort?
Wann begann die Zeit und wo endet der Raum?
Ist das Leben unter der Sonne nicht bloß ein Traum?
Ist was ich sehe und höre und rieche
nicht bloß der Schein einer Welt vor der Welt?
Gibt es tatsächlich das Böse und Leute,
die wirklich die Bösen sind?
Wie kann es sein, daß ich, der ich bin,
bevor ich wurde, nicht war,
und daß einmal ich, der ich bin,
nicht mehr der ich bin, sein werde?(...)"


[excerto da "Canção da Infância" ("Lied Vom Kindsein") de Peter Handke)

[tradução (livre) para português]
"(...)A criança, enquanto criança
não sabia que era uma criança
e [para ela] tudo não tinha alma
e todas as almas eram uma só (...)

Quando a criança era uma criança,
era o tempo para estas perguntas:
Porque é que eu sou eu e porque não sou tu?
Porque estou aqui e não ali?
Quando começou o tempo e onde acaba o espaço?
A vida debaixo do Sol não será apenas um sonho?
O que eu vejo, ouço e cheiro
não será a ilusão de um Mundo antes do Mundo?
Uma vez que existe o Mal e as pessoas,
será que o Mal existe realmente?
Como é possível que eu, que sou eu,
Não exista antes de ser,
e que, algum dia, eu, que sou eu,
deixe de ser quem sou?(...)"

Der Himmel über Berlin [Asas do Desejo], de Wim Wenders, um filme belíssimo e imprescindível.

sábado, fevereiro 25

O que é uma metáfora?

Philippe Noiret e Massimo Troisi em Il Postino

Um poeta célebre vem viver para uma pequena cidade italiana e é necessário que alguém lhe vá entregar o correio. Instigado pelo pai, Mario (memorável Massimo Troisi), que andava descontente com a vida de pescador, acaba por aceitar o emprego e passará a ser il postino, entregando o correio a Pablo Neruda (genial Phlippe Noiret). Eis o âmago de Il postino, filme maior do cinema europeu da década de 90.

Filme belo e sensível, Il postino retrata uma das mais improváveis amizades: aquela que se dá entre o erudito Pablo Neruda e um homem simples, seu carteiro. Uma amizade nascida da admiração de Mario (que não quer desperdiçar a oportunidade de falar com alguém que merece ser falado) e de uma inicial frieza e distância de Neruda.

Uma vez quebrado o gelo, no momento em que Mario pergunta ao grande Neruda pela poesia, este, extasiado pelo interesse de Mario faz o seu melhor para explicar. Uma amizade que se desenvoloverá, passando pelo episódio do autógrafo do livro e atingindo o apogeu na conquista de Betrice. E é aí que vemos o respeito mútuo de ambos. Neruda nunca se tenta superiorizar a Mario nem procura evidenciar a sua supremacia cultural. Pelo contrário, ajuda-o, conversa com ele. Não escreverá um poema para Beatrice, mas dará conselhos e irá ao bar com Mario para analisar a situação...

Se antes só tínhamos entrega de correspondência, cada visita de Mario passará a ser uma lição de vida, envolta em diálogos simples, mas profundos. Amizade que nem o regresso de Neruda à terra natal refreará. Mario, sempre acreditando no regresso do poeta fará de tudo para que este não se esqueça dele (belíssimo momento em que Mario grava sons da ilha para enviar a Neruda). E, de facto, o poeta regressará, mas para obter uma triste notícia: Mario tornara-se militante empenhado e morre numa manifestação... E, nesse momento, o rosto toldado de Neruda diz tudo: assume a culpa por não ter refreado a admiração de Mario (tal como Neruda era um destacado militante de esquerda, também Mario terio de o ser).

E é disso que se faz uma grande amizade, tal como um grande filme. E só porque hoje está a chover, aproveito para recordar uma das lições de Neruda. À pergunta "o que é uma metáfora?", sai a resposta pronta:

O céu está a chorar

terça-feira, fevereiro 21

À procura da América perdida

Dennis Hopper, Peter Fonda e Jack Nicholson em Easy Rider

Viagem à procura de uma América perdida e tentativa de (re)descoberta do sonho Americano, Easy Rider, de Dennis Hopper, é um marco do cinema independente e, acima de tudo, é um marco no cinema politicamente empenhado.

Tendo como pano de fundo a viagem de dois motociclistas (Wyatt e Billy), Hopper dá-nos um retrato cru e, de certa forma, datado dos EUA. Basta lembrar que estamos no ano do lendário festival de Woodstock e estamos em pleno mandato de John Kennedy. Mau grado este pormenor, o filme não deixa de manter viva sua força, mormente porque mais não é do que o retrato da procura de liberdade (ou, talvez, da ilusão da liberdade). Rectius, porque Easy Rider quebra com convenções sociais através dessa viagem espiritual em busca da liberdade.

Provocatório, Hopper não deixa de evocar nomes lendários da História dos EUA através dos nomes das personagens principais: Wyatt (Earp) e Billy (the Kid). Trata-se de uma forma de desconstrução do mito da americanidade que é vísivel pelo facto de Wyatt, se designar "Capitão América". Um capitão américa com um estilo de vida pouco saudável e recomendável (atente-se que os nosso protagonistas financiam a viagem através da venda de drogas), um pouco à imagem da ideia de degradação dos EUA que Hopper não deixaria de ter.

Uma viagem que não deixa passar por alguns dos ícones dos EUA, como seja Monument Valley, que funcionam como contraponto com um estilo de vida decadente da juventude. Lembre-se a hilariante estadia no acampamento hippie ou o rocambolesco encontro com as prostitutas. De tudo isto é feito Easy Rider, filme desmitificador, que usando de forte ironia oferece um cortejo de símbolos americanos (desde a bandeira, passando por Monument Valley ou pelos chapéus de Cowboy), que figuram lado a lado com marginais e drogados, que mais não são do que os filhos de uma América que já não existe e que Wyatt e Billy se propuseram encontrar.

Uma América conservadora (que ainda hoje é), que reage mal ante pessoas estranhas (à imagem de People are strange dos Doors), designadamente quando essas pessoas têm cabelos compridos, barba por fazer e um aspecto pouco limpo. Uma América que, na essência, pode ser reconduzida a qualquer outra nação. E é entre a frágil tensão do conservadorismo/puritanismo de uma América intolerante e o idealismo de uma geração jovem (corporizada em Wyatt e Billy) que flui este road movie contra-cultura.

Uma geração que encontrou na marijuana e na música Rock uma válvula de escape para poder responder ante a pressão (social e não só) que sobre ela impende. Acima de tudo, há que nunca esquecer:

"Like a true nature's child

We were born, born to be wild"

Ou, dito de outro modo, há que nos deixar levar pelo sonho (pois, conforme dizia António Gedeão, O sonho comanda a vida), mesmo que esse sonho venha a redundar num rotundo fracasso, como no caso de Wyatt e Billy.

sexta-feira, fevereiro 17

The deer hunter

Robert De Niro em The deer hunter

O canto do cisne da política autoral versão Hollywood*.
Os vietnamitas detestam-no, pois entendem que Michael Cimino simplificou em demasia a Guerra do Vietname, tal como o detestam os activistas anti-guerra (lembre-se Jane Fonda, apelidando The deer hunter como uma versão racista da guerra). Perante este cenário, é mister ter bem presentes na memória as palavras do realizador: trata-se de um filme sobre pessoas.
Tendo como ponto de partida uma grupo de trabalhadores do aço, vemo-nos confrontados com um bando de verdadeiros inúteis (até fazem lembrar, vagamente, os vitelloni de Fellini), que roçam a idiotice (veja-se o episódio da ultrapassagem do camião). Apesar, disso topamos com uma forte união entre todos, sobressaindo Michael (um impressionante e inesquecível Robert De Niro), que dará o mote para todo o filme com a sua máxima "one shot". Desejando um ritual de caça puro, Michael entende que basta um único tiro para se matar a presa. Só assim se estará à altura no animal nobre que é o veado e só assim se caça de forma limpa.
Previamente, ao ritual da caça, somos brindados com um longo, arrastado e desmesurado casamento. Como contraponto à alegria dos convivas, deparamos com um soldado desconhecido que Michael e companhia brindam. Eis uma breve mostra do efeito da guerra nos homens. Se o grupo de amigos se gaba com a ida para o Vietname, desejando travar bons combates, o soldado apenas riposta com um seco, mas significativo "Fuck it!", exemplificativo do total alheamento em que vive.
Subitamente, vemo-nos transportados para o cenário de guerra. Trata-se da mesma mudança brusca que as próprias personagens sofrem e é aí que reencontraremos, de novo, a máxima one shot. Desta feita não lidamos com a pureza da caça. Pelo contrário, é um único tiro que traçará a fronteira entre a vida e a morte. Em jogos de roleta russa, Cimino mostra o quão baixo pode ir a natureza humana: apostando a vida dos prisioneiros, os vietnamitas divertem-se tentando adivinhar quem morrerá pelas próprias mãos.
Após uma bem sucedida evasão, com a chegada ao Hospital de Saigão, Nick (um portentoso Christopher Walken) começa, progressivamente, a ficar distante. Se o mote é dado com um olhar frio e gélido para os caixões enviados para os EUA, após uma tentativa infrutífera de chegar à fala com Linda (Angelical Meryl Streep), acaba por decidir vaguear por Saigão, em virtude de crer ter perdido o seu único elo de ligação para com o Mundo.
Nesse preciso momento, atingimos o grau zero de humanidade: vemos uma prostituta vender-se à frente do berço onde está o seu filho e, acto contínuo, um oportunista francês vê em Nick uma excelente oportunidade de negócio, levando-o a alinhar em sessões organizadas de roleta russa. Nick, mau grado o olhar vazio, adere para ganhar dinheiro. O mesmo dinheiro que enviará a Steven (eficientíssimo John Savage) e que permite questionar se Nick se alheou (ou não) por completo do Mundo.
Não deixa de ser curioso que a adesão seja feita sob o olhar de Michael. Será o avolumar do complexo de culpa que o levará tentar fazer com que Nick regresse. Falando de regresso, Michael retorna aos EUA. Mas volta diferente: angustiado e incapaz de encarar os amigos, apenas encontrará um porto de abrigo em Linda. O contacto com a violência da guerra conduzem à impossibilidade de matar, e, consequentemente, o próprio ritual da caça deixa de ter sentido, tal como a sua própria vida deixou de ter um rumo. Este só voltará a aparecer quando se propõe fazer regressar Nick. Novamente, num momento tocante, regressa a máxima one shot. Um único tiro matará Nick, o que não deixa de ser tragicamente irónico após este se ter lembrado do ideal da pureza da caça: one shot.
E que melhor fim do que um brinde a Nick, após um sentido God bless America ? A mesma América que mandou os seus filhos para a morte no campo de batalha, a mesma América que destruiu inúmeras famílias, acima de tudo, a mesma América a quem todo o grupo de Michael não deixou de fazer uma vénia. Patriótica ou não, eis a questão.
Filme-manifesto, The deer hunter permanecerá como o ponto máximo de um realizador maldito. Maldito porque levou conceito de cinema de autor ao máximo (veja-se a saga da rodagem de Heaven's Gate) e maldito porque teve a coragem de por o dedo na ferida, mostrando de forma crua os efeitos da Guerra no ser humano e não se coibindo de mostrar os despojos de guerra, maxime os veteranos de guerra, corporizados em Steven, abrindo a porta para Born on the 4th of July de Oliver Stone.
Cimino, volta. Estás perdoado.
*em bom rigor, o canto do cisne terá sido Heaven's Gate, também de Michael Cimino.

quinta-feira, fevereiro 16

Brokeback Mountain

Jake Gyllenhaal e Heath Ledger em Brokeback Mountain

Ang Lee rubricou um filme belo e poético, tendo a coragem de contar uma história de amor diferente do habitual, pois assenta numa relação homossexual. Nada mais.
Estamos perante a história do amor impossível de dois homens que, inicialmente têm dificuldades em aceitá-lo e, posteriormente, não conseguirão assumi-lo, bastando-se com encontros esporádicos. Eis o cerne de Brokeback Mountain, um filme que passa boa parte do tempo a interrogar-se sobre a negação da natureza humana e sobre o complexo de culpa inerente a tal negação.
Muita da força do filme radica nos inúmeros planos (belos, fascinantes,...) da montanha Brokeback, sempre omnipresente, quer fazendo lembrar a Ennis (maquinal Heath Ledger) que a sua verdadeira felicidade está na montanha, quer preenchedo os sonhos de Jack (espantoso Jake Gylenhall).
Como contraponto desses planos verdadeiramente oníricos, temos a relação dura e crua de Jack e Ennis. Uma relação de silêncios e arrebatamentos ocasionais. Mas, então, onde está a magia de Brokeback Mountain? A meu entender está na forma (quase sempre) elíptica de Ang Lee nos contar este amor. De facto, apesar de depararmos com o "querer bruto e fero" de que falava Garrett, esse querer apenas é mostrado em doses perfeitamente contidas.
A par deste amor proibido, ainda se tenta explorar outros campos. Basta atentar que quer Jake quer Ennis casam e têm filhos, mas nunca se sentirão preenchidos. Ou seja, é colocado o acento tónico na negação da natureza humana e, a par dessa negação, temos, de mãos dadas, um constante sentimento de culpa que se abate sobre os personagens, devido ao facto de não serem capazes de assumir a sua relacção.
Com um final peculiar, Ang Lee lembra-nos isso mesmo: o plano final da janela poderá ser visto como a necessidade de olha para o Mundo exterior, tendo o condão de nos fazer lembrar que há que procurar sair das paredes em que nos enclausuramos.
Foi precisamente isso que Brokeback Mountain fez: rompeu (ao de leve, é certo) com convenções e contou uma história diferente. Acontece que a diferença reside, apenas, no amor homossexual. No restante, é uma história convencional.
Daí o grande sucesso do filme junto das massas. Basta comparar, por exemplo, com o tom teatralizado de Querelle - Ein Pakt mit dem Teufel (Querelle - um pacto com o demónio) de Rainer Werner Fassbinder. É certo que Fassbinder tinha a grande dificuldade de adaptar a obra de Jean Genet, mas também não é menos certo que o fez pondo de lado muita da violência do livro homónimo, redundando num filme algo maquinal. Todavia, Ang Lee, mau grado alguma auto-contenção, fez um filme belo e sensível, capaz de prender o espectador à cadeira.
Ang Lee fez "algo". Com os anos se saberá precisamente "o quê".

domingo, fevereiro 12

Viagem ao fim da loucura

Klaus Kinski em Aguirre, der zorn Gottes

Adapto o título do célebérrimo Voyage au bout de la nuit de Louis-Ferdinand Céline para me referir a um dos filme mais poderosos que conheço: Aguirre, der zorn Gottes (em vernáculo "Aguirre, a cólera de Deus") de Werner Herzog. Um filme onde o diálogo não abunda e onde, a própósito das expedições de Lope de Aguirre (um genial Klaus Kinski) e de um grupo de conquistadores pelo Rio Amazonas, rumo à cidade perdida de de El Dorado, é-nos oferecido um dos mais grandiloquentes e conseguidos retratos da loucura, captados por uma câmara de filmar.
Estamos perante um filme onde a interacção entre o ambiente e as personagens é levada à perfeição (o mesmo Herzog, anos mais tarde, dar-nos-ia outro exemplo desta simbiose perfeita no extraordinário Fitzcarraldo): a imensidão da selva amazónica que a câmara de Herzog se propôs dominar enche a vista desde o início, a par de uma interpretação memorável de Klaus Kinski.
A personagem de Aguirre, mormente o seu carácter duro, é favorecida pela utilização de um conjunto considerável de planos contrapicados, acentuando a magnitude do seu carácter. Basta lembrar que Aguirre se considera um Deus. Um carácter que, apesar de forte, será dominado pela Natureza, que se encarrega de demonstrar que nem o mais forte dos Homens a pode domesticar (a este propósito, é mister salientar os belíssimos planos panorâmicos do Rio).
Ambição, sonho, sede de glória, eis o que guia Aguirre e o levará à loucura. Uma loucura que cresce à medida que o grupo de Aguirre se aventura no interior da selva (provavelmente, Apocalypse Now de Francis Ford Copolla terá retirado daqui alguma influência). Se inicialmente até se pode falar num certo patriotismo, à medida que se abrem caminhos por entre a vegetação e pelo grande braço de água, a tensão e a luta entre os soldados cresce, como que se se tratasse do instinto de sobrevivência de cada um a vir ao de cima.
A par da manifestação deste instinto primário, que está latente em todo o fillme, vemos o gradual toldar do raciocínio de Aguirre. Onde antes havia objectividade, apenas toparemos com sofreguidão, consequência lógica de uma maior aproximação de El Dorado: a cidade lendária, fito da expedição e coroa de glória que Aguirre deseja só para si, não havendo lugar para proceder à partilha com outros.
Aguirre é o retrato de uma das mais fiéis necessidades humanas: a imortalidade. A conquista/descoberta de El Dorado seria o único modo de ser recordado no futuro, fazendo prolongar o seu nome por anos sem fim. Dito de outro modo, Aguirre tem a noção do absurdo do existir (de certa forma, algo verdadeiramente digno de Camus) e combate desesperadamente para escapar ao fim último.
A expedição, obviamente, fracassa: Aguirre, encerrado no seu círculo de loucura é o único sobrevivente, em ninguém para comandar, para além dele próprio. Quase que se poderia dizer que a Natureza (ou mesmo Deus) goza com Aguirre, que acaba sozinho numa jangada. Do mesmo modo, poder-se-á dizer que é o céu cinzento (que está omnipresente em todo o filme) que decide cair sobre Aguirre, colocando-o no seu verdadeiro lugar, reduzindo-o à sua insignificância.
Um filme perturbante e que marca de forma indelével a memória, tal é a força da interpretação de Kinski (nunca é, nem será demais repetir e insistir neste ponto) aliada à mestria ímpar de Herzog. Um filme a ver e rever.

Lost in Translation

Bill Murray e Scarlett Johansson em Lost in translation


Eis um dos poucos filmes recentes que admiro verdadeiramente. Nunca será demais dizê-lo, tal como nunca será exagerado afirmar que Sofia Copolla é das mais interessantes cineastas da actualidade. Filha de peixe sabe nadar, mas, acima de tudo, Sofia Copolla tem provado que nada deve ao seu pai, o magistral Francis Ford Copolla.
Bob Harris (sublime Bill Murray) é um actor célebre, que está em Tóquio para gravar anúncios publicitários e Charlotte (personalizada Scarlett Johansson) está em Tóquio a reboque do seu marido, um fotógrafo workaholic. Ambos sofrem de insónias e, por mero acaso, conhecem-se num Hotel em Tóquio, criando um forte laço entre ambos.
Conforme diz Mafalda Azevedo, redigir um texto sobre Lost in translation é escrever sobre a vida de todos nós. Nada mais correcto. Na verdade, todas as misérias e esplendores da vida moderna estão plasmadas neste filme: a solidão, a dificuldade no relacionamento, os difíceis amores. Em resumo, alguns dos dramas pós-modernos (em sentido não lyotardiano, como sempre).
O filme passa-se em Tóquio, que mais não será do que uma metáfora da vida moderna. Da mesma forma que ambos os americanos perdidos no Oriente se sentem incapazes de comunicar com aqueles que os rodeiam, essa dificuldade pode ser alargada para a vida em sociedade: quem poderá afirmar que nunca se sentiu insatisfeito com a sua profissão? Quem nunca teve problemas de identidade? Quem nunca esteve só? Quem nunca sentiu dificuldades em comunicar com outros? Resumindo, no filme domina a ideia de alienação. Uma alineação que é materializada na impossibilidade de comunicação com os nipónicos, mas que é a projecção do "eu" de Bob e Charlotte.
De certa forma, Sofia Copolla, retoma temáticas tão caras a outros realizadores (Antonioni parece pairar de forma quase omnipresente), conferindo-lhes um cenário mais actual. Lembre-se o deambular típico das personagens de Antonioni e compare-se com as deambulações de Bob e Charlotte por Tóquio, nomeadamente o inesquecível Karaoke.
Estas deambulações, para além de demonstrarem uma forte necessidade de procurar escapatórias à realidade, têm também o condão de mostrar que as grandes amizades (...mas será apenas amizade?) nascem nos momentos mais inesperados e nos lugares mais inóspitos. Eis o tom positivo do filme que contrabalança com a viagem pela negatividade da vida moderna. Aliás, essa amizade poderá ser vista, de certa forma, como um combate à alienação. De facto, ante um total "desligar" da vida social, quer Charlotte quer Bob sentem necessidade de se ligarem a algo, necessidade essa que será "satisfeita" plenamente na relação que ambos criam.
Neste tom verdadeiramente agridoce, durante cerca de 100 minutos, vivemos e compartilhamos os dramas existenciais de Bob e de Charlotte, tendo a oportunidade de podermos reflectir sobre nós próprios. Acima de tudo, estamos perante um filme avesso às etiquetas. Mas uma coisa é indiscutível, creio: trata-se de uma obra de génio e sensibilidade. Mais: uma obra em que Sofia Copolla não deixou de colher a lição de alguns mestres europeus.
Concluo relembrando o inusitado (e original, no mínimo) final, que confere um tom verdadeiramente aberto ao filme: um reencontro que é simultaneamente uma despedida (será mesmo?...), em que, após um beijo, ambos os personagens se despedem com um grande sorriso...
O mesmo sorriso com que eu fiquei depois de rever, uma vez mais, este grande filme.

terça-feira, fevereiro 7

Amarcord

Magali Nöel em Amarcord

"Io mi ricordo", "lembro-me", eis o significado do título deste filme de Federico Fellini. Cumpre lembrar Luiz Pacheco, que dizia ser dotado de uma imaginação podre, pois só escrevia sobre as suas vivências. Mutatis mutandis, poder-se-ia dizer o mesmo a propósito de parte do cinema de Fellini. Amarcord, a par de I vitelloni, são, neste particular, os exemplos paradigmáticos.
Porquê podre? Porque este filme mais não é do que a recordação dos tempos da juventude do própio Fellini em Rimini, mas há muito mais para além disso. Com efeito, vemos um retrato duro sobre uma certa forma de educar que privilegia o recalcamento dos estímulos sexuais, bem como uma educação assente no castigo e na mera memorização. Paralelamente, temos ainda a omnipresença de um regime político que oprime a população e que promove o culto da imagem. El duce aparece no filme como aquilo que foi na realidade: uma figura bruta e cómica (cristalizada comicamente num cartaz grotesco). Aquando da chegada dos fascistas a Rimini temos a perfeita definição dos mesmos: brutos e toscos (o trote pelas ruas chega a ser hilariante...)
Perante um clima destes obviamente, qualquer espírito que prime pela liberdade, rectius, pela irreverência, não deixará de procurar rebelar-se e é esse uma das principais ocupações de Titta e dos seus amigos. De certa foram, Titta será uma projecção do próprio Fellini, que sempre primou pela irreverência e pela inovação na sua obra (não é à toa que a expressão "felliniano" foi cunhada).
Pese embora esta reminiscência, Fellini, usufruindo de um magnífico guião de Tonino Guerra (o grande colaborador de Michelangelo Antonioni), acaba por por a nu o principal fito da existência humana: a reprodução. É assim que vejo o grito desesperado do louco tio Teo que, no cimo de uma árvores, lança repetidas vezes o famoso: voglio una donna!, que ressoa por toda a planície. Grito de desespero, fruto do recalcamento promovida pela educação recebida e, simultaneamente, o relembrar do objectivo do Homem, o cadáver adiado que procria como mui avisadamente dizia Pessoa. Uma loucura com uma angustiante lucidez, apesar de tudo.
Amarcord surge ante os olhos do espectador como uma dança de episódios que têm como pano de fundo (e leit motiv) a grande e problemática família de Titta. Uma dança que por vezes roça a insanidade, tal é o número de narradores que, indo ao encontro da câmara e olhando os espectadores nos olhos, aproveitam para nos por a par das novas sobre Rimini, desde a sua fundação até ao acontecimento mais recente. Uma dança feita ao som da dolente banda sonora de Nino Rotta, perfeitamente capaz de nos embalar e de nos fazer entrar na vida de Rimini, nem que mais não seja durante a projecção do filme...
E por entre essa bruma criada pela imensidão de narradores surge uma amálgama de personagens que têm um ponto comum e central: o instinto e o desejo. De facto, são estes dois elementosa grande tónica de Amarcord. Seja pelo grande poder de atracção que uma mulher vestida de vermelho - la Gradisca - provoca em toda a povoação de Rimini, sejo pelas hormonas saltitantes do protagonista Titta e do seu grupo de amigos. Um grupo com sonhos e anseios, que são manifestados, por exemplo, aquando da realização de uma corrida de carros.
Anseios que, de certa forma, são partilhados por uma população que se interroga pelo que se passa nas paredes do Grand Hotel, dado que não podem custear a sua entrada pelo limiar da porta. Assim, ante tal impossibilidade, resta apenas o sonho e a divagação, que são exponenciados pela proximidade ao mar, projecção de aventuras e de sonhos e por um ambiene, o mais das vezes, envolto pela neblina...
Sexo, Sonho, conquista da liberdade e idade adulta, eis os quatro vértices de Amarcord, vértices que podem ser corporizados em Gradisca que, no fim de tudo, acaba por desistir da liberdade e decide casar-se com um polícia. Mito inicial e desistente final, Gradisca será o principal fio condutor de toda uma narrativa, metáfora maior da vida segundo Mestre Fellini: carpe diem.
E assim flui de forma agridoce Amarcord entre as memórias de Fellini (e, também, Tonino Guerra) e os sonhos e anseios das personagens, cabendo ao espectador discernir qual das duas vertentes prevalece no filme: recordação ou sonho?

Morte a Venezia

Bjorn Andresen e Dirk Bogarde em Morte a Venezia
Que dizer desta belíssima adaptação do romance "Der Tod in Venedig" de Thomas Mann? À partida não se afigura tarefa fácil, pois estamos a falar de um clássico da literatura, bem como de um filme belo e sensível. Ficar-me-ei por algumas notas a propósito do filme de Luchino Visconti.
Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde), compositor, desloca-se para Veneza de modo a poder recuperar a sua debilitada saúde. Durante a sua estadia, fica deslumbrado com um jovem polaco, Tadzio (Bjorn Andresen), acabando por vir a apaixonar-se. Paralelamente, em Veneza dá-se um surto de peste asiática. Von Aschenbach, após algumas tentativas, vem a descobrir tal facto e avisa a mãe de Tadzio de modo a que esta abandone a cidade, salvando o seu filho. Tal não sucede e Von Aschenbach morre na praia, contemplando Tadzio enquanto este se banha no mar.
Ora, dito deste modo, parecerá que estamos perante um enredo simples. Todavia, tal não sucede. A propósito de vários eventos, vislumbramos várias recordações de Von Aschenbach, desde as suas discussões sobre o conceito de arte, passando pela morte da sua filha ou por uma ida a um bordel, culminando numa actuação frustrada num concerto.
Em "Morte a Venezia" topamos com uma concepção de arte que prima pela racionalidade, pelo trabalho árduo e por uma recta concepção moral (Von Aschenbach), enquanto que do outro lado da barricada vemos o ideal de arte pura, uma arte selvagem que mais não é do que puro génio humano (concepção de Alfred). É precisamente nesse limbo que figura Tadzio: se inicialmente obriga a que Aschenbach se fixe nele, com o decurso da acção vemos uma criatura fria e racional que parece retirar prazer da fixação que Aschenbach tem.
Com isto chegamos ao epicentro de todo o filme: o olhar. Os diálogos não abundam. São desnecessários e apenas funcionam como instrumento para vislumbrar o estado de espírito de Von Aschenbach. De igual modo, é através dos olhos de Aschenbach que vemos Veneza: uma cidade sombria (mas com uma beleza hipnotizante), alheia e distante. Tão distante como o objecto desejado: Tadzio. Tão distante como o modo de encarar a vida e as pessoas que Aschenbach propugna...
Trata-se, pois, dum filme sobre desejo e, acima de tudo, um filme sombrio, onde nem a beleza natural de Veneza se impõe. Pelo contrário, a cidade aparece transfigurada pelo olhar de Aschenbach, daí o tom sombrio que predomina em todo o filme, mesmo nos planos panorâmicos iniciais. Acima de tudo porque a morte não deixa de pairar em todo o filme. Inicialmente, porque a saúde de Achenbach é periclitante e, posteriormente, porque é o surto de cólera que passa a comandar as preocupações de Aschenbach. Como excepção a este tom sombrio temos apenas os planos de Tadzio, dotados de um perfeito onirismo e, simultaneamente, de realidade, fruto do olhar glaciar (por vezes a roçar o zombeteiro) de Tadzio.
De certa forma, o episódio em que Aschenbach vai ao cabeleireiro com o fito de rejuvenescer o seu aspecto poderá ser lido, creio, como uma revolta contra o fim inelutável que se avizinha. Mais do que uma forma de impressionar o impassível Tadzio, Aschenbach ter-se-á enganado a si próprio e terá procurado iludir a sua real condição, vestindo uma máscara de juventude, quando o seu espírito estava irremediavelmente destruído e obliterado pela passagem do tempo. Tão corroído que, às portas da morte, Aschenbach recorda o grande falhanço que o seu último concerto representou.
Morte a Venezia, um filme belo, sensível ao nível do melhor Visconti (verbi gratia, em Il gattopardo, Rocco e i suoi fratelli ou Senso)

sábado, fevereiro 4

Giù la testa

James Coburn em Giù la testa

Cumpre salientar que opto por utilizar o título original deste grande (mas menosprezado) filme de Sergio Leone, que conheceu três outros títulos: Duck You Sucker! (tradução para inglês de Leone), A Fistful of Dynamite (utilizado pelos produtores americanos, de modo a retirarem proveitos com a similitude da trilogia "dólares"), e Once upon a time...the Revolution (título utilizado em França para acentuar a continuidade com Once upon a time in the west).
Pier Paolo Pasolini referiu-se a este filme afirmando que Leone, progressivamente, era um realizador com cada vez mais interesse, dado que dava cada vez mais relevo aos dramas existenciais do Homem. Ora, apesar de tão honroso elogio, o filme foi um flop comercial nos Estados Unidos da América, tendo sido alvo de um forte corte: de 160 minutos, o filme ficou reduzido a quase duas horas.
Creio que a principal razão que explica o fiasco comercial prender-se-á, certamente, com o tom político extremamente acentuado desta obra. Lembre-se que em 1971 estamos em plena Guerra do Vietname e a Guerra Fria continua a pairar sobre a mente dos americanos. Assim, o facto de se abrir um filme com uma citação de Mao Tse-Tung sobre a luta de classes não terá ajudado muito ao sucesso do filme (citação que, cirurgicamente, foi cortada aquando da exibiçao comercial).
De facto, o tom político é omnipresente. Dois exemplos:
i) Os guardas mexicanos são a projecção das SS (ou, caso prefiram, dos Camisas Negras de Mussolini), bastando relembrar as inúmeras execuções com que o espectador é presenteado, maxime numa sequência em que vemos inúmeros mexicanos a ser fuzilados numa vala comum...
ii) Os planos iniciais em que Juan Miranda (Rod Steiger) entra numa carruagem repleta de vários elementos da Alta Burguesia. Juan é alvo de vários epítetos (animal e ignorante são os mais comuns) lançados pelos seus "companheiros", enquanto estes comem. Aqui Leone utiliza um dos seus recursos clássicos: o close up. Com planos exagerados das personagens a comer, sentimos o crescimento da raiva de Juan, que é acentuada pela repetição em eco dos insultos e dos close ups das personagens (dizem que é uma cena similar a O couraçado Potemkine de Eisenstein) e que só acaba quando a carruagem é assaltada.
Pese embora este tom político, o filme tem uma mensagem bem definida: a Revoulução é violenta e traz sequelas. É essa a grande lição que Sean, rectius John (James Coburn) nos dá. Trata-se de um irlandês membro do IRA que se refugia no México. Precisamente a propósito de John, saliento ainda a o reencontro com um dos recursos favoritos de Leone: a analepse. Graças a este recurso técnico, partilhamos dos sentimentos de John, em que vemos a recordação dos dias felizes da sua vida, bem como dos momentos marcantes da Revolução que ele conhecceu e e participou activamente.
Neste particular, é manifesto o contraste entre a verdejante Irlanda (ninho de felicidade) e o árido deserto mexicano (o degredo de John). De igual modo, não deixa de ser curioso o facto de a analepse final mostrar um trio amoroso, como que se se tratasse de um piscar de olhos ao genial "Jules et Jim" de François Truffaut.
Finalmente, temos uma transformação final tocante: quando Juan dá conta que John morreu, vemos uma profunda alteração do seu rosto, como que significando que passou a assumir as responsabilidades da Revolução. Uma vez mais, temos Leone em plena evolução: já não temos personagens que são. Pelo contrário, temos personagens que evoluem.
Filme a ver (ou rever, consoante os casos), de preferência sem ideias pré-concebidas. Só assim se poderá fazer uma correcta avaliação desta obra.
PS - A tradução portuguesa "Aguenta-te canalha" deixa muito a desejar, tal como a alemã "Todesmelodie" - Sinfonia (literalmente, seria "melodia") da morte.